Brasil Editor
Contemporâneo
Paulo Lustosa
Seu silêncio ilumina
meu vazio
Seu silêncio ilumina meu vazio entre pétalas
de flores soltas e uma garrafa
de vinho tinto pela metade.
Restos de um pão farelado sobre a capa
do caderno onde escrevi meu último poema.
Apesar do frio iminente, a janela continua aberta deixando entrar sua indelével e perturbadora presença.
Sou levado por visualizações transitórias, algumas imagens trêmulas sem muita importância.
Motivo-me a buscar alguma coisa leve, essencialmente bela, que me traga
sua lembrança sem nenhum lastro de martírio.
Olho fixamente pela janela e observo atentamente o movimento da rua na vã
e sonhadora tentativa de capturar sua inocente imagem.
Viro-me para o interior do quarto iluminado
e observo toda a desordem psicológica e silenciosa deixada por você.
Penso na dependência desse amor e o quanto ele deixa transparecer esse sentido sem limites na autorização da crueldade.
Sim! O amor é tão belo quanto cruel! Sempre deixará transparecer isso!
Ouço uma música vinda de outra casa.
Talvez clássica? Talvez Erik Satie?
Ouço também outros sons advindos da ampla vizinhança.
Quanto ainda tenho de vinho e delírio para suportar e compreender toda a dor da minha loucura na construção desse poema?
Quando o amor nos entorpece cegamente,
você encontra o prazer e o belo em vários sentidos, até na perversão.
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No mundo em que vivemos hoje e somos obrigados a ser felizes, onde todos os apelos
de padrão e consumo são instrumentalizados
e nos oferecidos num requinte
de existencialidade e crueldade, devemos entender e tratar a angústia como uma coisa muito séria e libertadora, portadora de um renascimento interior, conscientemente sabedores de que essa fuga ou esse esquecimento proposital em não tratá-la, ocasionará num processo mais doloroso
em relação a tudo e a todos, tornando esse caminho verdadeiramente perigoso e sem volta.
O poema
O Poema é meu
É mítico
É mágico
Ávido em habitar palavras
Ele se consome no seu gozo
No seu trágico!
O Poema é Ateu
A máscara de Zeus
O festim das cores do Tzara
Ele subverte o sexo das Ninfas
Ele chora
Ele brinca
Ela ama
Ele mata!
O Poema é Orfeu
O anjo torto de Deus
O fuzil rasgando as flores de Maio
Ele verte a lâmina selvagem da tua língua
ele sangra
Ele míngua
Ele blasfema sobre o túmulo de Laio!
O Poema é Prometeu
O filho que não nasceu
O romantismo desvairado de Byron
Ele voa livre sobre os lençóis do Vento
Ele desafia a face oculta do Tempo
Ele é azul, quando se vê do Espaço!
O mundo sensível
e bucólico da solidão
...agora que todas as coisas
já não são mais suficientes
para mim, onde uma espessa
camada de gelo pesa
continuamente sobre minha
existência espezinhada, descobri
um outro mundo, o mundo
sensível e bucólico da solidão
e de toda a sua singularidade
que se nos apresenta com
tons assustadoramente belos,
transformando lágrimas
pesadas em cristais
de desenhos suaves, de uma
natureza totalmente anômala
a miséria humana que habita
em cada um de nós.
Em um segundo podemos
mudar nosso mundo
Ontem eu morri, mas hoje, por incrível que pareça, amanheci vivo! Sustentado por um levíssimo sopro de esperança! ...Varei essa transição entre a morte e uma incrível vontade de viver sem a inevitável necessidade da luta, sem a implacável exigência da nossa impiedosa existência, sem a fragilidade onírica e cruel das religiões! Quantas provações impostas pelo ser humano serei obrigado a assumir? Por que meus questionamentos dependem das suas leis e das suas religiões? Por que tenho que me curvar diante de um deus que não conheço e de quem nunca comprovei a existência para viver e me salvar após a morte? Se o diabo existe, como alegadamente a religião nos impõe, é porque um deus estabelecido sob os alicerces do pecado e do medo não é tão legítimo nem absoluto assim. Por que a morte física nos é natural e a religiosa não? Por que existe somente um deus e não outros deuses? Por que vivemos para morrer e só depois viver uma vida eterna? NÃO! Me recuso a me curvar diante de tanta impotência, de tanta pequenez, diante de tanta incapacidade do ser humano em saber que ele mesmo é o seu próprio deus. Por que a religião nos oprime para guardar o nosso corpo e salvar a nossa alma? De quem ela verdadeiramente nos salva, já que foi ela a responsável pela criação do mundo e do ser humano? Tudo isso pode ser somado ao seu grandioso projeto de poder, ao seu rebanho de iludidos que ainda acredita em salvação, em vida eterna, em uma vitória do bem sobre o mal... mesmo depois de tantas guerras, mortes e catástrofes humanitárias... Ela ainda acha justa e normal para seu rebanho impor essa dependência cruel de medo e de pecado, de cultos e de obrigações, de louvor e sacrifício em nome da sua subsistência, do seu projeto de poder! NÃO! Eu não quero nem aceito o medo e o pecado como um paradigma de imposição religiosa a minha sadia escolha de ser livre, de não ter nenhum deus! André Breton muito astutamente disse que assumiu sua liberdade religiosa, quando aos 18 anos passeava por um cemitério de Paris e leu numa lápide uma frase que seria dali em diante seu grito de libertação: "NEM DEUS NEM PATRÃO!" Achou aquilo tão forte e libertador, que sua vida transitou em um segundo milhares de anos de questionamentos entre a vida e a morte, a luxúria e o pecado, a religião e o medo...! Passei em um segundo essa mesma transição que Breton passou e vi tudo e todos numa luta constante de amor e ódio, de luta e afirmação... vi claramente a nuvem cinza religiosa sobre a cabeça das pessoas que ainda não sabem que sua sagrada liberdade não depende de nada imposto, de nenhum deus e sim da sua única e determinada vontade de viver!!!
Tua poesia pulsa
(Poema em homenagem ao poeta Mário Faustino)
Tua poesia pulsa soberana e febril sobre o deserto do tempo.
Influenciada por uma lua sem fases,
colhendo flores dispersas que
não necessitam de água nem de abelhas,
plantadas num único pé de verso.
Ela sorve todo grão de areia de seus desenhos túmidos,
antes que o descuidado simum, sem saber o que pratica,
desconstrua suas falanges de poemas livres.
Tua poesia pulsa vigorosa e lúcida sobre a
aurora que nunca nasce,
sobre os pântanos não florescidos,
sobre cada lágrima cristalizada de um poeta turvo,
adulto e não vingado.
Ela segue seu destino intocável
Levada por negros lençóis de nimbus
Que irrigarão espaços mares frios
Sem uma gota sequer da tua fértil e úmida língua.
Tua poesia pulsa firme sobre o verso trêmulo,
reprime incrédulo o verbo fácil,
repulsa a lira triste de um anjo cínico nesse vazio
inverso de um universo falso!
O Rastro da Tua Pele
Ônix sobre o Ébano.
Negra sensibilidade das cores Negras!
Nunca a mesma palavra
Todo o racismo consome
Você não entende e some
O mundo, sempre o mundo,
Eternos conflitos,
Suas diferentes raças
Todos aqueles rostos de cores fugidias.
Cruel foi teu destino
De seguir o rastro da tua Pele
E encontrar todo o abismo da existência do teu ser.
Não somente como forma de procura
Ou promessa de uma nova vida,
Pois o dardo do teu enigma
Correu tão velozmente
Quanto o dardo da tua indignação!
Filho dos Espíritos Livres
Tua África flutua no teu corpo
Como flutua a águia e o falcão!
Poesia, Poesia, Poesia...
A flor azul da pedra do
Pão de Açúcar
Ela clama por seus pares sumidos e
desesperados como a última nuvem branca de
Outono sobre a insinuante montanha de pedra!
Tão lentamente sensual e cruel que
mesmo num contraste de
corpos e cores forma uma só figura
desenhada por Deus,
gerando nesse ritual de
afrodisia indômita, um sêmen mágico
umedecido pela nuvem solta que dá vida e
alimenta a rara e bela Flor Azul da
pedra do Pão de Açúcar!
Tinta Negra
Este poema é dedicado aos poetas Gustavo Admoli,
Lucas Azeredo e Thiago Fonseca, que, insurgidos de uma
criatividade livre e sem vícios, trouxeram à tona a
clássica e sublime lição do Mestre Mário Faustino aos
novos e jovens poetas:
"repetir para aprender, criar para renovar."
Paulo Lustosa
Vai
Leva a tua poesia aos que têm fome
Nutre com teus versos insanos e insones
Os estômagos embrulhados dos que ainda creem em redenção
Oferece tua palavra como um artifício
Assim como Rimbaud ofereceu seu corpo a Verlaine.
Tinge com tua tinta negra a vagina cálida
De uma virgem em sacrfício
Redesenha toda sua silhueta esquálida
Ruboriza sua face pálida
Como Lautrec fez magnifiquement em seu ofício.
Penetra nos labirintos das catacumbas
Uma por uma até encontrar o sêmem sagrado deixado por Eros
Grita tua loucura mais insana
Dorme com Jocasta em sua própria cama
Como dormiu seu lídimo e inconsciente Édipo.
Vai
Leva a tua poesia aos que têm sede
Aos que não têm sonhos
Aos que são sonâmbulos.
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Do livro Cerâmicas
de Maria Diva Boechat
Salomés
Se sentimento fosse transferível,
talvez te convidasse a partilhar
comigo do divino festim.
Serviria numa bandeja dourada:
os cabelos de Sansão,
a cabeça de João Batista,
a maçã de Eva.
e, com extrema delicadeza,
nos fartaríamos nesse banquete.
Santidade
Violentos -
pois a urgência dos corpos
não podia suportar
o descontrole do afeto.
A palavra amor
não podia traduzir a urgia dos sentidos.
Então de insultaram,
gritaram maldições.
Com aspereza,
se invadiram,
se dilaceraram.
Devoraram-se.
O rito canibal
santificou seus corpos.
Objeto
Tua pessoa nada tem de místico, de metafísico:
és definido, concreto, sensorial.
“Vaga”, “informe” são palavras
que não se aplicam
a tua presença rígida, de objeto.
As arestas formadas por tuas angulações
ferem e alargam meus sentidos.
Da aspereza provocada
pelo impacto entre nossos corpos
surgem faíscas
que queimam,
mas também iluminam.
Lobisomem
Quando este animal
me dilacera e devora,
sua fome é de apoderar,
de possuir,
de incorporar.
Assim que pressinto a lua cheia,
lavo-me,
banho-me em perfumes.
E entre lençóis brancos
anseio por sua gana.
Minotauro
Embrenho-me por labirintos...
procuro-te.
Diante de tua presença,
não recuo: avanço.
Teu olhar de esfinge
propõe-me enigmas.
Deliberadamente,
não os decifro.
Devora-me!
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Geraldo Soares
Glória, Glória, Glória!
Nos céus, ecoa um coro de anjos
A Glória, outrora um símbolo de lutas e resistência entre originários e desbravadores, um esboço geográfico de fortaleza e calmaria, despontou de singela ermida para um farol arquitetônico de fé denominada Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Outeiro. E sob os auspícios da corte, tornou-se predileção do reinado e da nobreza, sendo palco batismal de rainha, princesas, do príncipe regente e alguns emergentes. Não tardou, o sinuoso traçado nas cercanias se transformou em vilas, ruelas de mansões e assobradados, conferindo à freguesia nos idos de 1930, o título de o "Saint-Germain-des-Prés Carioca". Parafraseando Sêneca: "Glória é a sombra da virtude". Glória é um "fractal" de majestoso passado, imponente presente e resplendente futuro!
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Depois da poesia
Igreja de Nossa Senhora da Glória
Estilo Colonial Barroco
Inaugurada em 1739
Azulejos do interior
do mestre Valentim de Almeida.
Sobre o arco-cruzeiro da capela-mor se encontra
o escudo da Família Imperial Brasileira.
Órgão produzido por Guilherme Berner,
instalado em 1949.
Foto / Acervo Brasil Editor
Jardim Botânico, Rio de Janeiro
Vejo as árvores sobre
as montanhas pinçadas d'ouro,
árvores que não se cansam
de se espreguiçar
em direção aos céus...
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OST Santos Netto
E em meio as silhuetas do pórtico, âmbar-ocre,
vê-se o clarão do imaculado branco.
Frestas de luz, sinais da aura celeste,
véu alvo abarcador de todas as sombras.
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Do livro Pó é, mas...
Mauro Oddo Nogueira
Sua casa
Venha! Pode entrar porque é sua esta casa.
Licença não peça, na porta não bata,
Não olhe pra trás, porque a vida não atrasa.
Respire, sorria, contemple e se enfeite.
Dance um flamenco com as costas pra rua.
Se aposse de tudo e em sua cama se deite.
Bem-vinda, flor nua. Bem-vinda, flor prata.
E agora resgata esta casa que é sua.
N. do A. Indriso, forma de poema derivada do soneto,
cuja forma petrarquiana é, em número de versos, 4433.
Composto por dois tercetos e dois
versos únicos (3311),
o indriso permite o uso livre de métrica e rima.
Foi criado em 2001 pelo poeta espanhol Isidro Iturat e
vem se difundindo com sucesso nos últimos anos.
Não!
A meus sonhos não renuncio!
Por mais sombras sobre nós,
Por mais que soprem seu bafio,
Por mais que calem minha voz.
De meus sonhos não abro mão!
Cobiça não nos faz humanos,
Só fez do ódio sua escravidão,
Dos homens animais insanos.
Nenhum dos meus sonhos renego!
Por mais desilusão que eu guarde
Quando, me tomando por cego,
Me queiram fazer de covarde.
Sonho, o teu caminho me aponte;
Liberdade é meu horizonte!
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Tio Alfredo
Alfredo Santos cursava o segundo ano de medicina, em 1915, ano em que perdeu a visão ao ser surpreendido por cruel enfermidade.
Professor de braille no Instituto Benjamin Constant, o poeta carioca enxergava a vida na poesia, nos versos fiéis ao seu destino. Teve trabalhos publicados em jornais e revistas da época. O Malho, entre outras, poemas aplaudidos por críticos.
Sérgio S. Netto
Destruições
Na falda do Vesúvio, antigamente,
cheia de encantos, plena de poesia,
descansava, formosa e sorridente,
Pompéia que traqüila florescia.
Despertando o gigante, em lava ardente,
do sono transitório que dormia,
numa grande hecatombe, de repente,
foi ela destruída certo dia.
Ferido nalma por aguda seta,
também, na minha Itália de poeta,
da esperança nos dias mais risonhos,
rugindo numa fúria louca, intensa,
despertou-se o Vesúvio da descrença,
destruindo a Pompéia dos meus sonhos!
Meditação
Pergunto sempre a mim quem sou e de onde venho,
quem fui, para onde irei na forma em que transito
perdido neste cáos, presídio circunscrito,
que rola pelo azul nas leis de um sábio engenho.
E nisso a refletir, às vêzes me detenho,
da vida perscrutando o ritmo infinito;
mas quanto mais perscruto, e nisso mais medito,
num pélago sem fim também mais me despenho.
Envôlta num mistério, a vida me aparece
sujeita a grandes leis que a gente desconhece,
buscando um fim qualquer que sempre a orientou.
E após muito vagar num mundo ignorado
sem nada descobrir, e muito haver pensado,
da tese nada sei, só sei que nada sou.
N. do E. Manteve-se a ortografia original
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A morte do besouro
Carlos Henrique Costa
Ao pé do abajour,
a morte de besouro é fato esquecido.
Ninguém na repartição é capaz de lembrar
há quanto tempo ele jaz próximo ao cinzeiro.
Também não lembro
há quantos dias o vejo figurativo,
incorporado, agora, à natureza mineral do destino.
Apenas lembro, cada vez que passo por ali,
que um dia serei besouro
e, de mim mesmo, nem eu darei conta.
Do livro Tempo Desejo,
Rio de Janeiro, Editora Antigo Leblon, 2016.
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