Brasil Editor
Contemporâneo
Freud
com os escritores
RESUMO DAS AULAS
regpina@gmail.com
Interpretação sobre os textos do livro
Freud com os escritores
Tradução de André Telles
Capítulo 1
Freud e Shakespeare
Um dos autores mais lidos por Freud,
William Shakespeare,
teve suas obras e conceitos incorporados
à psicanálise.
Ambos estudaram a alma humana. Exploraram seus recônditos, os conflitos e tumultos, forças obscuras que habitam o ser humano e as loucuras que o apossam. Freud encontrou Shakespeare na adolescência, Hamlet e Julio César passaram a habitar o seu mundo. Os textos de Freud contêm referências à obra do dramaturgo. No artigo "Obsessões e fobias", o psicanalista utiliza Lady Macbeth para ilustrar o caso de uma paciente obsessiva: lavava as mãos cem vezes por dia. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, foi fundamental para a psicanálise. Em setembro de 1897, Freud escreve ao amigo Fliess e cita Hamlet, e irá citá-lo no artigo "Esboço de psicanálise”, escrito em 1937.
Hamlet, qualificado como "O neurótico universalmente célebre", seria mais atual que o Édipo da lenda? Édipo agiu às cegas antes de ficar cego, ao saber de sua dupla infração. Realizou o Complexo de Édipo ao matar o pai e casar com a mãe. A punição foi necessária, estava rompido o interdito. Hamlet não é Édipo, seus desejos edipianos existem disfarçados, escondidos dentro de sua alma. Como matar Cláudio, tio assassino do pai de Hamlet, se ele foi o realizador dos seus próprios desejos recalcados, o instrumento para a realização dos desejos incestuosos infantis? Hamlet é o homem do sofrimento, o ser dividido, em conflito, e a vingança é sempre postergada. O crítico literário Starobinski define Hamlet como "O paradigma edipiano, uma sombra que não se assemelha ao original". O que faz Hamlet adiar o ato de vingança assassina, enquanto encontra forças para matar Polônio, enfrentar Laertes em um duelo mortal, enviar Rosencrantz e Guildenstern para a morte?
Freud diria que na origem da inibição,
na indecisão de Hamlet se encontra
um conflito não resolvido,
como em todo neurótico.
O recalcamento dos primeiros objetos
de amor e ódio se faz presente.
Histérico? Melancólico?
Certamente alguém submetido
à excitação da perda.
Macbeth ocupa um lugar importante na obra de Freud, embora reconheça seu fracasso na tentativa de explicar Lady Macbeth: "desmorona, cai doente após o seu triunfo". A explicação só viria mais tarde ao escrever o texto "Arruinados pelo êxito". O desejo não pode ser totalmente satisfeito, se o for, servirá à pulsão de morte. O Eu sofrerá um despedaçamento, uma ruína, eventualmente uma loucura.
Estreita relação entre felicidade e doença
Freud não quis abandonar Lady Macbeth, ele precisava mergulhar no mais obscuro de sua mente para entender esse processo. No texto "O tema dos três escrínios", um dos seus mais belos textos, inspira-se em O mercador de Veneza e Rei Lear para falar da tríade feminina e da representação da morte em Cordélia.
Freud utilizará o texto "As exceções" para falar de Ricardo III. O mundo deve a ele por tudo que lhe tirou, uma reparação. Sentimentos encontrados nos neuróticos, também desejam uma compensação por feridas narcísicas, por desejos incestuosos infantis abandonados. Freud elaborará um texto a respeito do Witz (chiste), formação do inconsciente que nos chegará via linguagem. Chistes, atos falhos, lapsos são manifestações do inconsciente inteligente, material que interessou Freud, e mais tarde Lacan. O Id não fala, se manifesta, é um predador.
"A fortuna de uma piada se encontra
no ouvido de quem a ouve, jamais na linguagem
de quem a contou".
Sigmund Freud
Shakespeare utiliza Witz para caracterizar Hamlet, o que se oculta do lado de dentro irrompe do lado de fora. Não seria o próprio processo psicanalítico? O sonho é um Witz em alguma medida, uma assombração em nossas noites escuras.
Shakespeare uniu o inconsciente inteligente e o inconsciente pulsional, vida e morte, Id e Eu, a fusão da loucura e do furor com a inteligência do nosso inconsciente. Que motivos levariam Freud ao final da vida criticar Shakespeare... seriam ciúmes do lugar ocupado por Shakespeare na psicanálise?
"Guardar ressentimento é como tomar veneno
e esperar que a outra pessoa morra".
William Shakespeare
Capítulo 2
"Goethe não é só um homem bom e grande,
representa uma cultura", disse Nietzche.
Freud nasceu 24 anos após a morte de Goethe.
Influenciado por sua obra,
Freud afirma que o texto "A natureza",
atribuído a Goethe,
decidiu sua matrícula em medicina.
Goethe tornou-se um “companheiro”
inseparável de Freud, o mais citado
nas obras do psicanalista
e nas cartas escritas à noiva Martha Bernays.
De acordo com Didier Anzieu
(psicanalista francês),
diversos aspectos uniram
os dois, especialmente
o "desejo de saber" de ambos.
Freud estudou os poemas de Goethe, citou os célebres versos destinados a Sra. Von Stein ao "evocar a força dos traços mudos que só um tratamento psicanalítico pode fazer expressar (...)
Freud nos mostrou três pontos de encontro entre a psicanálise e a obra de Goethe: o sonho, a possibilidade de libertar a alma humana do sofrimento e a importância de Eros. Demonstrou grande interesse na figura de Eros na obra de Goethe, considerou que poucos poetas tiveram a capacidade e sensibilidade para representar a diversidade das manifestações do amor em suas modalidades. Goethe apresentou em suas obras formas agressivas da sexualidade humana, traços de perversões sexuais. Goethe reconhecia no amor uma mágica capaz de conduzir o homem ao êxtase ou à própria destruição (suicídio de Werther).
Freud afirmava que o amor nos proporciona experiências prazerosas, no entanto deixa o Eu desprotegido e exposto. A perda do objeto do amor poderá ser devastadora. No livro Totem e tabu (1913), Freud cita Goethe: "No princípio era o ato". Nesse texto elabora uma construção polêmica, o assassinato do pai primitivo pelos filhos, dando origem ao Super-eu. "No princípio era o ato", frase citada por Doutor Fausto no "gabinete de estudos" faz parte da cena em que Mefistófeles fará sua aparição. A voz de Goethe-Fausto parece misturar-se com a de Freud em Totem e tabu...
Goethe, pulsão de vida e pulsão de morte
A obra de Goethe ampara as noções de pulsão de vida e pulsão de morte, noções relacionadas aos fatos históricos da Primeira Guerra Mundial e principalmente à ascensão e triunfo do nazismo na Alemanha, representante da própria pulsão de morte. A noção de pulsão de morte surge no texto "Além do Princípio do Prazer", de 1920. O verdadeiro adversário de Mefistófeles é "a força da multiplicação da vida", Eros.
Freud considera a dupla Fausto-Mefistófeles de extrema importância, a relação que une os dois personagens e suas significações. Uma obra magnífica, repleta de simbolismos. Sigmund Freud pensou o amor (Eros) sem jamais esquecer o instinto de morte, forças tão poderosas na dinâmica psíquica, na constante e eterna luta interior do ser humano.
Freud e Émile Zola
Émile Zola foi condenado a pena máxima:
um ano de prisão e multa significativa
por defender Dreyfus
no famoso caso que abalou a França.
Zola refugiou-se na Inglaterra.
Casado com Alexandrine Zola, Émile nasceu em 2 de abril de 1840, Paris, França e faleceu em 29 de setembro de 1902. Freud cita várias obras de Zola em seus ensaios, "Germinal", "A Taberna" e muitas outras. Freud se interessou por Zola não apenas como escritor, ao admirar suas obras. Por esse motivo estudou o longo "Inquérito médico psicológico" elaborado por Edmond Toulouse, após obter consentimento de Zola.
Edmond Toulouse estudou
as ideias mórbidas de Zola
“... à noite abre sete vezes os olhos para certificar-se de que não vai morrer, se não tocar nos bicos de gás é porque vai lhe acontecer uma desgraça... a lista é longa”.
Freud cita o livro Fecundidade como um dos preferidos de autoria de Zola. A personagem tivera doze filhos, Freud tivera seis. Zola era casado com uma mulher estéril, e por esta razão, talvez, possuía dois filhos com uma jovem de 21 anos. Ele ama Jeanne, e Jeanne fez dele um pai. Ser pai de uma obra fecunda parece não ser suficiente nem para Zola, nem para Freud.
Sobre Émile Zola
A Taberna (1876) é o sétimo romance da série
dos vinte volumes da obra
Os Rougon-Macquart.
O romance traz um estudo psicológico
profundo das consequências
do alcoolismo e da pobreza na classe
trabalhadora parisiense.
Em Germinal (1885), o décimo terceiro
e o de maior evidência, Zola descreve
com realismo as péssimas condições de vida
dos trabalhadores em uma mina
de carvão na França.
Depois de reaberto o processo Dreyfus, e Dreyfus ter sido solto, Émile Zola e sua mulher retornam à França. O casal morreu em condições enigmáticas, asfixiados por monóxido de carbono enquanto dormiam. Teriam bloqueado a chaminé de seu apartamento com esse propósito? Após o desaparecimento do escritor, Émile Zola foi exaltado. Seus restos mortais foram transladados para o Pantheon, monumento dedicado aos heróis da França.
Frases de Émile Zola
Os governos suspeitam da literatura porque
é uma força que lhes escapa.
O sofrimento é o melhor remédio para
acordar o espírito.
Privado de uma paixão, o homem ficaria
mutilado como se o privassem
de um dos sentidos!
Se você me perguntar o que eu vim
fazer neste mundo,
eu lhe direi: eu vim para viver em voz alta.
Se você calar a verdade e enterrá-la,
ela ficará por lá.
Mas, pode ter certeza que,
um dia, ela germinará.
Goethe e Schiller
Weimar, Alemanha
Capítulo 3
As diferenças entre os dois eram notórias,
as afinidades eram flagrantes.
Freud e Thomas Mann admiravam os clássicos,
Goethe e Schiller, reconheceram
a importância de Schopenhauer e Nietzsche.
Além disso, demonstravam certo
interesse no ocultismo.
Freud escreveu dois ensaios sobre o tema:
"Psicanálise e telepatia"
(1921, publicado em 1941)
"Sonho e telepatia" (1922)
Ambos estudaram as narrativas bíblicas: Mann escreveu a tetralogia "José e seus irmãos", Freud, "Moisés e o monoteísmo". O mito de Fausto exerceu enorme influência sobre Mann, como podemos observar em sua obra, Doutor Fausto. Freud fez várias citações à figura de Mefistófeles, seus diálogos com Fausto e o pacto entre eles. Thomas Mann após superar algumas resistências frente à psicanálise, se aproximou dos temas freudianos. Observamos nos romances de Mann personagens neuróticos, doentes imaginários obcecados por suas sensações, como Christian Buddenbrook ou Hans Castorp (A Montanha Mágica), e principalmente o doutor Krokóvski, caricatura de um psicanalista que apresenta aspectos de inspiração freudiana.
Apesar das resistências à psicanálise, Mann escreveu o ensaio mais importante sobre a obra de Freud: “A posição de Freud na moderna história das ideias”. Mann recebeu o Prêmio Nobel de Literatura no mesmo ano da publicação deste texto. Mann nos lembra: O psíquico em si é inconsciente, a consciência é tão somente um de seus atributos, pensamento fundamental na psicanálise. O escritor e os intelectuais da época se preocupavam com a submissão das massas, preocupação caricaturada em sua obra "Mário e o mágico", verdadeira parábola da ascensão do fascismo italiano e seu líder Mussolini. A novela apresenta muitos pontos em comum com o ensaio de Freud "Psicologia das massas e análise do Eu" (1921), uma antecipação do nazismo. O prestidigitador de Mário se assemelha a Krokóvski da Montanha Mágica, ambos desejam exercer seu poder sobre o indivíduo, um verdadeiro fascínio hipnótico.
A aproximação de Mann com a obra freudiana talvez tenha mostrado a beleza e a presença de Eros, não apenas as forças obscuras existentes nos indivíduos. Thomas Mann e Freud trocaram correspondências e livros. Em seu discurso de 1936, "Freud e o futuro", Mann insistirá no lugar privilegiado de Freud na história da cultura, responsável por uma ruptura epistemológica com as concepções psicológicas e filosóficas do passado.
A Gestapo confisca parte
dos livros de psicanálise
em uma livraria berlinense
"Freud e o mito", a segunda conferência de Mann sobre Freud. A intersecção do individual e do mítico. Freud remonta à infância das almas individuais e descobre a vida primitiva do homem, o mito; mas é em sua maturidade intelectual que a paixão do psicanalista alcança a plenitude, com "Totem e tabu", texto preferido de Thomas Mann. O demoníaco surgirá reiteradamente na obra de Mann, para ele Freud era o “cavaleiro de olhar de aço que avança movido exclusivamente pela coragem, escoltado pela morte e pelo diabo”. Tal figura reflete o mundo interior e artístico de Mann: a morte o atraia. Seu último romance é o encontro do escritor com o demoníaco Doutor Fausto.
O mesmo fulgor se apresenta na última novela "A miragem" (1953), uma versão do demoníaco no feminino, outro reflexo do seu mundo interior, mais próximo da ternura do que o cavaleiro de aço. Freud teria apreciado a incrível novela, no entanto o tempo do psicanalista findou.
Freud e Schnitzler
Médicos, judeus, ateus, escreviam copiosamente, provocavam escândalos com suas obras. Freud e Schnitzler: convergências e divergências. Com seu texto "Os três ensaios sobre a sexualidade e Schnitzler com a novela "A Ronda", escandalizaram. Um dado curioso dizia respeito ao pai de Schnitzler, possuía interesse pelos distúrbios da voz, a afonia funcional, tendo tratado de inúmeras cantoras. Um dos primeiros escritos de Freud se refere ao tema da afasia. Freud escutou as histéricas, deu voz para que fossem ouvidas. Continuou sua caminhada em direção ao inconsciente, desbravando, percorrendo caminhos desconhecidos, sonhos, fantasias, atos falhos e chistes. Desejava descobrir as leis que regem o funcionamento desse inconsciente.
O Duplo
Schnitzler se interessava pelos sonhos, leu "A interpretação dos sonhos". As novelas deste autor apontam sonho e realidade emaranhados: onde se situam os limites? O sonho desperta nossos desejos recalcados. Freud escreve a Schnitzler "Evitei-o em decorrência de uma espécie de medo de conhecer o meu duplo". Frase enigmática, o duplo não é um alter ego, não é um amigo, não é alguém que nos protege, é exatamente o oposto.
A figura do Doppelgänger é inquietante, ameaçadora, melhor não conhecê-lo, ganha traços de um perseguidor. Figura maléfica, portadora da loucura e da morte, nos arrasta para muito além de breves momentos de inquietante estranheza. O que levou Freud a identificar em Schnitzler a figura do duplo? No artigo "Infamiliar", Freud nos dirá que o duplo somos nós, parte de nosso material recalcado, inconsciente, não o reconhecemos, o projetamos no exterior, uma vez que esse material nos ameaça. Representaria Schnitzler, apreciador das mulheres, voltado à pulsão sexual uma ameaça à "pulsão de saber" de Freud? Freud cita em seu texto ter se perdido em um beco na Itália, mulheres maquiadas nas janelas, ele se perde e após várias tentativas consegue encontrar uma piazza. Atração e repulsão, como teria agido seu duplo?
Jantar com Freud
No entanto, Freud convida Schnitzler para jantar em sua casa, protegido pela mulher e pela filha Anna. Aqui nada de inquietante. Schnitzler faz críticas à psicanálise, embora afirme que "certos eventos psíquicos se passam quase inteiramente no inconsciente e, de quando em quando, qual mergulhadores evoluindo sob as águas, lançam um olhar perplexo à sua volta à luz da consciência e, em seguida, voltam a mergulhar e desaparecem para sempre". Encontramos nos aforismos de Schnitzler uma passagem, escrita antes do reconhecimento, por parte de Freud, da pulsão de morte (Além do princípio do prazer).
"O contrário da libido seria a aspiração à autodestruição, à morte, a fazer o mal". Destruir, associemos ao parricídio de “O apelo da vida”, peça de Schnitzler, ou em sua novela “O assassino”. Destruir-se, pensemos no suicídio da senhorita Else. Freud demorou para reconhecer essa força de destruição que se exerce fora e dentro de nós. Schnitzler, dedicado ao culto de Eros, que ele identifica ao erotismo, nunca a desconheceu.
Capítulo 4
“Dostoiévski e o parricídio", de autoria de Freud, publicado em 1928, demonstra a profunda admiração do psicanalista em relação ao escritor que dedicava especial atenção aos "Os Irmãos Karamázov". O texto causou surpresa por omitir a capacidade de Dostoiévski em analisar a alma humana. Freud destacou na personalidade de Dostoiévski quatro aspectos: o escritor, o neurótico, o moralista e o pecador.
Os Irmãos Karamázov
"Ele tem seu lugar não muito atrás de Shakespeare. Os Irmãos Karamázov é o romance mais grandioso jamais escrito", diria Freud. Stefan Zweig afirmava que “Uma nova psicologia começa com a arte de Dostoiésvvski”. Freud se aproxima da intimidade psíquica de Dostoiévski por meio do parricídio. A crise epiléptica do escritor adquire o significado de uma identificação com o pai morto e de uma punição pelo ataque perpetrado contra o pai odiado, assassinado por uma "pequena horda" de camponeses quando Dostoiévski tinha 18 anos.
As fantasias do escritor se realizam em função desse assassinato: matar o pai. Suas crises se agravam. O romance Os Irmãos Karamázov retoma o motivo do parricídio já tratado por Sófocles e Shakespeare. Dostoiévski expõe no romance a rivalidade entre pai e filho, os dois apaixonados por uma mulher. O assassino é o filho natural, também epiléptico, e carrega o erro de um ato que os outros haviam desejado cometer.
O jogo e a autopunição
Freud avalia a paixão do escritor russo, um viciado em jogar. Jogava tudo e tudo perdia. O jogo funcionava como uma poderosa autopunição. Aplacado o sentimento de culpa, "o demônio" do jogo o abandonava e cedia lugar "ao gênio criador". Freud considerava a "Lenda do Grande Inquisidor uma das mais elevadas realizações da literatura mundial". Cristo retorna à Terra, em Sevilha, no século XVI, fase mais terrível da Inquisição. O Grande Inquisidor, velho nonagenário, ordena que a guarda do Santo Ofício o detenha. O extenso monólogo pronunciado por ele perante Cristo é o ponto alto do capítulo, acusa o Salvador de conduzir o homem à liberdade da fé. O homem precisa do dogma, da servidão, da obediência. Para o homem, para a sociedade humana, jamais existiu algo tão intolerável como a liberdade - palavras proferidas por Ivan Karamázov ao irmão Aliócha, considerado um homem puro.
Freud é um crítico da ideologia cristã do amor: invoca a dignidade e a responsabilidade do amor ao próximo. O homem é habitado não só por Eros como por uma pulsão agressiva. Seu objetivo é subjugar o próximo.
Reconhece o conflito ético que obcecava Dostoiévski: a dúvida sobre a existência de Deus, a contradição entre uma crença cristã ortodoxa e o exercício de uma consciência crítica. Freud era contrário à escolha da figura de Cristo como verdadeiro redentor, não só da Rússia, como da humanidade inteira, ideia inaceitável para uma concepção racional do mundo.
Stefan Zweig
Freud poucas vezes encontrou
Stefan Zweig na vida,
trocaram correspondência
entre 1908 e 1939,
ano da morte de Freud.
Os nazistas queimaram os livros de Zweig e Freud em maio de 1933, na praça em chamas. Zweig cometeu suicídio com sua mulher em Petrópolis durante o Carnaval de 1942. Zweig viu o mundo interior acabar, razões à parte, pessoais ou não, considerou o momento hostil, aqui não seria mais um lugar para viver. Tudo caminhava para a destruição, segundo ele.
Freud e Zweig trocavam comentários sobre as obras que realizavam, tinham mútua admiração. Zweig prestou sua última homenagem ao "venerado professor" no discurso pronunciado nas exéquias de Freud: "Ele, por sua vez, nunca cessou de ousar, incansavelmente, sozinho contra todos". No entanto alguns atritos ocorreram ao longo da correspondência Freud-Zweig. O mais grave, talvez, tenha sido a associação do nome do psicanalista a Mesmer, e principalmente, ao de Mary Baker Eddy, apóstola da fé (A cura pelo espírito, Stefan Zweig, 1931).
Obra de Zweig
A paixão é o tema da obra de Zweig: “Amok”, “24 horas na vida de uma mulher”, “O jogador de xadrez”. Indivíduos mergulhados na paixão – por jogo, por mulheres, por homens, por rapazes, paixões denominadas por Zweig de monomanias, representam criaturas impelidas por uma única exigência, um único objetivo: uma paixão transgressiva. Um aturdimento do coração e do espírito nos relega à solidão. As aventuras sexuais de Zweig foram tão breves quanto numerosas. Teria conhecido a paixão? Enfim conseguiu "sublimar" as pulsões que o moviam em pulsão de escrever. Pulsão de escrever para Zweig, pulsão de saber para Freud, e o interesse na face oculta da alma humana para ambos.
"Os escritores nos superam de longe,
a nós, homens comuns,
especialmente em matéria de psicologia,
pois bebem em fontes ainda
inexploradas pela ciência".
Sigmund Freud
Qual seria esse segredo?
Freud não o desvendou.
Sempre se curvou ao mistério
da obra de arte.
Zweig vinha de família abastada, Freud de uma família falida, judeus ateus que não aderiram ao sionismo. A causa de Freud era a psicanálise, a de Zweig o humanismo. Zweig pacifista, Freud destruidor de ilusões. Em sua carta aberta a Einstein, Freud pergunta: "Por que a guerra?". Na carta Freud afirma que a violência é inerente ao homem, o homem nasceu criminoso. A pulsão de morte pode levar à autodestruição, embora opere em silêncio como um câncer subterrâneo, escreveu Freud. Após a leitura de "A confusão dos sentimentos”, novela escrita por Zweig, baseada na atração de um professor por rapazes, professor casado, Freud altera algumas afirmações sobre a homossexualidade presente em "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", definida como "inversão", e completa: "O amor entre dois homens não é contra a natureza humana, pois esta é bissexual".
O mundo que eu vi
Zweig em seu livro "O mundo que eu vi" expressa a certeza da ausência de futuro, futuro fadado à destruição, assim como o presente e o passado. Freud em um dos seus textos escrito logo depois a Primeira Guerra Mundial, "A transitoriedade", cita que nossa existência é uma série de perdas. As perdas ensejam a reconstrução, o que dá encanto à vida.
Seu livro "Psicologia das massas e análise do Eu", 1921, tinha algo de premonitório ao analisar o laço que une um grupo, um povo, a seu chefe, a seu Fuhrer, ao ponto da identificação obstinada. Freud se perguntava como poderia imaginar que esse laço, essa dependência, essa submissão pudessem conduzir ao aniquilamento. Impossível representar o irrepresentável.
Capítulo 5
Heimlich e Unheimlich
O que é do país, pertence ao lar,
o que é de casa, permanece secreto.
Heimlich
O prefixo Un denota a significação oposta,
"a inquietante estranheza".
A emoção que nos invade quando algo
de familiar ou íntimo se torna estranha,
angustiante ou aterradora.
Unheimlich
O homem da areia
Freud analisa o conto de E.T.A. Hoffmann, O homem da areia, ao tratar do tema Unheimlich, a forma do que foi recalcado. Esse "íntimo estranho" que nos habita, consegue retornar e manifestar-se em nossa vida cotidiana? Freud procura equivalentes do termo alemão nos idiomas grego, latim, hebraico, árabe e nas usuais estrangeiras: inglês e espanhol. Uma angústia entre o linguajar revestiria a angústia ocular, a angústia dos olhos ou "nos olhos", relacionada à angústia de castração.
Quase toda a obra de Freud é visitada na literatura, nesse ensaio, o estranho inquietante parece surgir da própria intimidade de sua escrita com a literatura, a força "poética" da língua torna-se Unheimlich por excelência. O que ocorre é o retorno do sexual infantil recalcado. Freud distinguiu dois conjuntos de representações encobertas no heimlich: o familiar, o confortável e o que está escondido, dissimulado. Observou a ambivalência que transforma o "familiar" em "estranho". Traz à tona a origem sexual infantil da inquietante estranheza, sua relação com a angústia de perder os olhos, o duplo associado ao reconhecimento do outro e de si, e à pulsão de morte. O estranhamento inquietante: o sexo feminino pode ser provocador, símbolo do desejo e do amor, do pavor e da morte.
A Heimat, a terra originária, o lugar dos começos, das mortes, da mãe, único e acolhedor. E o das Mães, deusas demoníacas desencadeando o caos e a destruição. Com Hoffmann, Freud descobre o núcleo do infantil que se torna ameaçador.
O Duplo
O Heimlich foi uma experiência vivenciada por Freud em duas situações. Na primeira, o retorno do recalcado associa-se ao sexual, e na segunda, a reação ao duplo representando sua própria imagem. Freud considerava Hoffmann “O mestre inigualável do estranhamento inquietante na criação literária", desbravador do fantástico, da estranheza. O desafio do duplo permeará o Romantismo, fonte fecunda do Unheimlich, expressão literária de um "mal-estar na cultura" do início do século XX. Freud em seu texto "A dissecção da personalidade psíquica" retomará o tema do Eu individual, suas alterações, distúrbios, e o duplo (Doppelgänger). Freud cita o romance O elixir do diabo como exemplo do gótico, no qual apresentam as várias manifestações do duplo, personagens que se assemelham, se comunicam por telepatia, retorno do mesmo, compulsão à repetição, caráter demoníaco.
O conto "O homem da areia" é considerado um procedimento literário destinado a produzir a sensação de Unheimlich: o leitor permanece em suspense até o final. Freud considera a fonte da inquietante estranheza a angústia de Nathaniel, personagem confrontado com a ameaça de perder os olhos, intimamente ligada à angústia infantil de castração. O conflito entre Nathaniel criança e o personagem demoníaco é o tema central na obra de Hoffmann. Figura demoníaca duplo do pai e do próprio personagem, que enlouquece e se mata.
Ao escrever seus contos fantásticos, Hoffmann mescla o sublime e o grotesco, o horrível e o maravilhoso, o trágico e o cômico, o adulto e o infantil. Detecta a nota dissonante nos homens e suas relações. Os contos de Hoffmann possuem uma força "magnética", o poder de encantamento, seus personagens fantásticos bebem na fonte de sua narrativa por vezes estranha, tentam despertar a criança amorosa, abandonada em seu profundo silêncio.
Capítulo 6
Freud caiu sob o feitiço de Gradiva
Gradiva caminha como o Deus Mars Gradivus,
rumo ao combate,
aqui o combate do amor.
O baixo-relevo acompanhou Freud
durante a vida, estatueta
sempre presente em seu consultório.
Wilhelm Jensen escreveu "Gradiva, uma fantasia pompeiana", a história de um arqueólogo alucinado por Gradiva/Zoé, o romance nos mostra a relação entre nossos atos irracionais e as escolhas dos objetos de amor, sob a forma literária trazem noções contidas na psicanálise. Freud era um apaixonado da arqueologia, atração das origens, recomposição dos escombros, aquilo que julgávamos perdido.
O recalcado não é o sepultado, não escapa à ação presente, o retorno do recalcado se dá por vias indiretas, distintas das produzidas no recalcamento. "O inconsciente ignora o tempo". Irreversível, o inconsciente escapa ao tempo dos relógios e calendários, transforma o passado em porvir. O inconsciente pressupõe períodos misturados, mas não é atemporal, afirmava Freud. Freud/arqueólogo sente prazer quando lhe contam a história da Gradiva. Para Freud alucinar sua psicanálise, para Norbert, o arqueólogo louco, alucinar sua Gradiva, coincidências entre o recalcamento e o soterramento de Pompéia, entre o psicanalista e o escritor. Norbert encontra sua Zoé em Pompéia, livra-se de seu delírio. É uma história de amor.
Freud escreve cartas ao autor Jensen em busca de respostas, busca o núcleo da verdade. Em vinte anos Freud observou o fosso entre Viena e Pompéia, entre ele e Norbert, entre a psicanálise e a arqueologia, não mais um tratamento de amor, mas o ódio, a morte, o sofrimento, as feridas irreparáveis.
Gradiva (Aquela que avança), figura mitológica,
baixo-relevo neoático romano, século II.
Escultura ao estilo grego do século IV a.C.
Representa uma jovem que dança
e levanta a barra do traje.
Museu Chiaromonti, no Vaticano.
Capítulo 7
Após ler algumas cartas de Goethe,
Ferenczi aponta afinidades entre o grande poeta
e o fundador da psicanálise, pensamento
que Freud não concordou inicialmente.
Dos grandes pensadores, Ferenczi supõe que Schiller seria o único não refratário à psicanálise. Freud considerava Schiller "uma das personalidades mais eminentes da nação alemã". Freud recorre à linguagem do poeta para caracterizar sua própria paixão pela pesquisa, como citado em carta a Wilhelm Fliess [...] “um homem como eu não pode viver sem um capricho, sem uma paixão ardorosa, sem um tirano, para falar como Schiller. Esse tirano, desco.bri-o e escravizei-me a ele de corpo e alma. Ele se chama psicologia e sempre o considerei meu objetivo distante mais sedutor, aquele do qual me aproximo desde que me deparei com as neuroses”.
Em Schiller, Freud encontra o sentimento do dever, da exigência ética para com os outros. Em Goethe, a reconciliação com a vida, a despeito da dor irreparável. Freud perdeu Sophie, sua filha, que morrera aos 26 anos em decorrência da gripe espanhola.
O poeta filósofo
Schiller é comumente designado por Freud como o "poeta filósofo". Em Schiller o poema parece lembrar-se das mais antigas tradições ocidentais, a dos pensadores poetas pré-socráticos, como Heráclito, Parmênides ou Empédocles, reconhecido por Freud como uma das principais fontes de sua concepção da pulsão de morte. Schiller resgata a tradição dos poetas filósofos, recuperando por meio do poema a problemática existencial profunda do humano.
A obra teatral de Schiller representa a luta incessante que dilacera sua alma: a paixão pela liberdade e a necessidade da lei. Goethe tornou-se protetor deste poeta com problemas materiais e de saúde. Schiller compartilha com Rousseau a ideia de uma natureza humana voltada para o bem e o belo, desviada de seus objetivos por meio da civilização e suas atividades fragmentárias.
Apenas a arte poderia restituir
ao homem
a realidade perdida
Podemos citar algumas obras de Schiller: Os salteadores, em que exalta o herói rebelde contestando o poder dos príncipes, Intriga e amor, Don Carlos, Guilherme Tell. Freud aproxima-se muitas vezes de Schiller na elaboração de seus textos. Em "O mal estar na civilização" toma como ponto de apoio a máxima do poeta "a fome e o amor" movem as engrenagens do mundo, ao se referir às pulsões do Eu e às pulsões do objeto. No texto "Interpretação dos sonhos", ele faz uso de uma imagem poética que representa a aliança criativa da inteligência e da imaginação. A atividade criativa liberta a razão de suas sentinelas, surgem o fluxo de ideias, a loucura momentânea e passageira que habita o próprio ato de criação.
Schiller é presença constante nos sonhos
de Freud por meio de evocações
de seus poemas e dramas.
Schiller impregnara a adolescência de Freud. Aos catorze anos Freud representara o papel de Brutus na peça reprodução de Os salteadores. Versos do poeta surgem no trabalho de interpretação de um sonho de um paciente de Freud, quem teria evocado os versos? A amizade é um tema predominante no belíssimo poema de Schiller, celebrizada pelos coros da nona sinfonia de Beethoven. No texto "O futuro de uma ilusão", Freud sustenta que o homem que não for alimentado pelo veneno doce da religião será capaz de confrontar-se com as dificuldades, abandonar a infância, a casa paterna e enfrentar o mundo hostil. Schiller conhecia o confronto do homem com "a vida hostil". A partir desse conflito surgirão o pensamento filosófico e o pensamento poético.
O dualismo pulsional em Schiller
Schiller foi um dos primeiros a utilizar
o termo Trieb (pulsão) em suas especulações
a respeito do belo e da função da arte.
Freud mostrou a importância do Triebe em sua teoria. O termo foi traduzido em outros idiomas sem manter a força existente no idioma alemão. Schiller concebeu um dualismo pulsional a partir da oposição e complementaridade de duas pulsões: pulsão dos sentidos e pulsão da forma. Na criação da obra de arte essas duas pulsões articulam-se por meio da intervenção de uma terceira, a pulsão lúdica, que se reúnem em jogo e brincadeira, verdadeiro gozo da arte.
Freud está longe do idealismo schilleriano
A pulsão Triebe em Freud é radicalmente marcada pela sexualidade, concebida em uma teorização dualista: pulsões sexuais e pulsões do Eu, pulsões de vida e pulsões de morte. Freud vê nas pulsões a motriz de atividades humanas valorizadas na sociedade, aparentemente sem fim sexual, como na atividade artística, cultural ou científica.
Os “gênios” de Freud
Ao longo de toda sua vida e obra, Freud é acompanhado por seus dois "gênios": o de Goethe, inseparável da inquietude de Eros, do gozo sensível da beleza do mundo e da criação artística, e o de Schiller, encarnação do sublime, da força do ideal, do drama do mundo interior, da revolta contra a injustiça e da exigência da ética.
Capítulo 8
Com Heine: os “Co-irreligionários”
Heinrich Heine, considerado o maior poeta do canto alemão juntamente com Goethe era aplaudido por célebres compositores da época: Schubert, Schumann, Wolf e Brahms. Sua prosa satírica atacava à sociedade alemã quando expunha as contradições de costumes, preconceitos, hipocrisia das convenções, injustiça do sistema político nas monarquias e a carolice das religiões. Ele evoca o amor e a tristeza.
Poeta do lirismo íntimo, defendia as ideias democráticas ao rufar dos tambores quando inspirado na Revolução Francesa. Não conseguia se adaptar à sociedade onde vivia. Viajava de cidade em cidade, sem conseguir um padrão de vida estável. Paris é o seu destino após assistir os violentos pogroms contra judeus. Em Paris conhece Karl Max e esposa, Wagner, Ludwig Borne (autor citado por Freud como fonte da livre associação de ideias). Bem acolhido nos meios literários da capital francesa, era o poeta alemão mais admirado juntamente com Hoffmann. Corria o ano de 1831.
Em Paris
Vinte e nove anos, pobre, endividado, patrocinado por uma bolsa de estudos, surge em Paris Sigmund Freud. O ano era 1885. Seu encontro com Charcot muda a vida de Freud quando ele é apresentado aos médicos, historiadores, jornalistas, artistas, escritores e outros intelectuais. Freud não conheceu Heinrich Heine em vida, mas admirava profundamente sua obra, em especial o Livro de Lázaro. Freud escreve “O Chiste e suas relações com o inconsciente”, em 1905. O nosso chiste é uma adaptação da palavra Witz em alemão, fenômeno essencialmente encontrado no âmbito da linguagem. A técnica do chiste consiste na condensação de duas palavras, comenta Freud ao citar o exemplo de Heine; “familionário” (milionário e louco). Freud utiliza o chiste de Heine par demarcar o cômico e o espirituoso, e afirma que é na ação de transmiti-lo a terceiros que o chiste assume sua verdadeira forma.
Lázaro, uma criança perdida
Escrito em 1854, Heine, paralítico,
com a vida por um fio, transforma o sofrimento
físico e psíquico em fonte de fala poética.
Chamas em Berlim
Os livros de Heine, Marx, Freud
e muitos outros intelectuais arderam
na pira nazista em 1933.
Capítulo 9
Com Romain Rolland
“Criar é matar a morte”
Pacifista a favor de instituições idealizadas na tentativa de evitar a morte entre os homens, exaltava o Amor e a Música. Escritor apaixonado, criativo, prolífico, proteiforme, teve sua obra destinada ao esquecimento.
Sentimento oceânico
Inspirado em Ramakrishna
Rolland é evocado por nossos psicanalistas como criador da teoria do “sentimento oceânico”. Um “destruidor de ilusões”, assim Freud era conceituado por Romain
Rolland. Para Freud, o célebre conceito “sentimento oceânico” era um estado originário do Eu ainda não separado do mundo exterior – o estado em que se encontra o bebê. Para Rolland, um sentimento místico, um êxtase. Este tema foi abordado por Freud no texto “O mal estar na civilização”, publicado em 1930.
No texto “O futuro de uma ilusão”, Freud nos revela a busca de um Deus para suprir o sentimento de desamparo infantil que acompanha o ser humano em sua caminhada na vida.
Reconheceremos no
“sentimento oceânico”
a fonte de anseios religiosos como
sugere Rolland?
Uma única vez. Freud e Rolland mantiveram correspondência por dez anos, embora somente uma única vez se encontraram pessoalmente. Divergiam, mas admiração mútua não faltava. Em 1934 a relação perde intensidade, e Rolland passa a fazer críticas à psicanálise.
Criar não mata a morte
Iludido, Freud insistia que a psicanálise tornava o ser humano melhor, menos prisioneiro da sua neurose. A cultura prevaleceria sobre a violência e a loucura do ser humano. Perto de sua morte, setembro de 1939, a Segunda Guerra Mundial acaba de ser declarada. Freud lê La peau de chagrin, de Balzac (“O fim da pele de onagro é o fim da vida; o ônus pelo êxtase de todos os desejos realizados”). Seu amigo Rolland se enganara: “criar não mata a morte”.
Capítulo 10
Nota sobre o Dichter
Dichter e Dichtung, dois termos em alemão, não possuem equivalentes em outros idiomas. Dichter é usado constantemente como o escritor, o autor, o narrador, o criador de obras literárias, o poeta. Dichtung é a capacidade de nomear os objetos, a própria origem da poesia, dos contos e lendas e da literatura dos povos.
Freud, no artigo de 1908, “Escritores criativos e devaneios”, publicado na revista literária Neue Revue de Berlim, cita Dichtung como sinônimo de obra ou criação literária. Para Freud é um campo privilegiado que estuda as engrenagens secretas, ponte entre o fantasiar do criador e a sua produção poética, ao estabelecer contato íntimo com as fantasias de desejo de cada indivíduo. Dichter foi introduzido por Freud no espaço do saber científico, o psicanalista reconhecia na Dichtung um acesso privilegiado à verdade psíquica.
Freud, um escritor?
Thomas Mann e Hermann Hesse consideraram
Freud um escritor.
E o que nos autoriza a reconhecer em Freud um escritor após este status concedido por escritores consagrados. Freud não possui um estilo, mas vários. Teórico exigente, argumenta sem ceder uma polegada de terreno, incansável na exposição de suas ideias. Além disso, um contador de histórias que desvela, ainda que discretamente, o que há de mais íntimo dentro de si.
Freud é inflexível, seu Deus é o Logos, dá crédito à ciência. A psicanálise para ele não se confunde com a literatura, o importante é ser reconhecido como cientista. A literatura exerceu atração sobre Freud, como vemos em suas cartas à noiva Martha. É imperioso resistir a essas tentações, o que se assemelha a uma renúncia, como escreve em uma carta à Silberstein.
Ninguém renuncia ao que
o tentou outrora.
"Há escondido em algum canto dentro de mim, certo senso da forma, uma maneira de considerar a beleza uma espécie de perfeição, e as frases intrincadas do meu escrito sobre o sonho ofenderam gravemente um dos meus ideais". Carta de Freud a Fliess, em 1899.
Um jovem “estilista alemão”
Desde a juventude, o desejo de saber acompanhou Freud. Sua ambição profunda era tornar-se um pesquisador nas ciências da natureza. Cita em uma dissertação alemã do "exame de maturidade":
"Eu queria na minha vida, dar uma
contribuição ao conhecimento humano".
Sigismund (chama-se assim até os 22 anos) dedica dez anos de sua vida à pesquisa científica (1873-1883). A mudança de rumo ocorreu em 1882, seu professor Von Brücke o aconselha a dedicar-se à medicina, devido à precária situação financeira de Freud. Além disso, o jovem cientista estava apaixonado por Martha e lutava na vida. Do sentimento amoroso, ressuscita o Dichter adormecido dentro dele. O jovem cientista entrega-se a pequenos ensaios da crítica literária, tentado a escrever obras de ficção, dando livre curso à expressão romântica de seu mundo interior. Contudo, sua vocação científica é irreversível, permite-se mudar de objeto: a anatomia cerebral, as afasias, as neuroses e a histeria, até finalmente chegar à criação da psicanálise.
O pesquisador-poeta da vida da alma
Freud tinha consciência da estranha relação que sua escrita estabelecia desde os primórdios de sua obra psicanalítica com a literatura: "Eis porque eu mesmo me surpreendo ao constatar que meus casos clínicos são lidos como romances e, por assim dizer, não estampam o sinete de seriedade típico dos escritos dos cientistas".
O Dichter aqui surge da escrita de Freud.
O sofrimento psíquico determina sua mudança na escrita, um escritor pondo a pena a serviço de sua investigação. O romanesco a serviço da vida psíquica, da exploração dos processos psíquicos da histeria, apenas o Dichter seria capaz de apreender e representar. O criador da psicanálise deve ser sensível à linguagem, não só quando escuta a fala do paciente, mas também quando escreve para divulgar sua descoberta.
Pensar e viver
A interpretação dos sonhos aproxima "as duas almas" que habitam o gênio freudiano. Freud foi obrigado a expor aspectos de sua vida privada, o que não é normal no caso de um autor que não é poeta (ditcher) e sim um homem de ciência ou pesquisador. Aqui Freud é o próprio objeto de sua pesquisa. Formação do sonho, o trabalho necessário à sua produção, significação e interpretação. Esses elementos aproximam o homem de ciência do escritor.
Escrever é entregar-se a uma influência secreta, inconsciente, que deixa vestígios que o pesquisador descobre e não quer apagar. É em torno de Édipo, de sua lenda, de sua retomada pela tragédia de Sófocles e pelo Hamlet de Shakespeare, que Freud vislumbra pela primeira vez a aliança fundadora entre a psicanálise e a literatura: o conflito constitutivo da psique humana, denominado por Freud "complexo de Édipo".
Freud escreve o relato dos sonhos e suas associações na condição de Dichter, sua escrita apreende as imagens oníricas, quando teoriza e constrói um modelo de funcionamento do aparelho psíquico, é um pensador, um pesquisador que abala a noção do sujeito humano.
O escritor recupera na língua a vida secreta do sonho, a estranheza noturna das imagens oníricas.
Dois "Romances" Freudianos
Ao encontrar Gradiva, surge o momento idílico de Freud com o Dichter, a identificação com o poeta surge em seu ensaio sobre Leonardo da Vinci. Freud exerce sua capacidade de análise e sua força de imaginação: o fantasiar. Moisés e o monoteísmo é um dos últimos trabalhos de Freud, não é um livro sobre o exílio do povo judeu, é sobre o exílio de Freud.
Contradizendo passagens de sua obra, Freud questiona o "valor de conhecimento" da literatura e exalta o caráter científico do procedimento psicanalítico. Situa o escritor do lado do prazer, coloca o psicanalista do lado do trabalho. Freud teme confundir-se com seu duplo, amado e temido, o escritor, sente necessidade de reafirmar a supremacia da ciência do psicanalista sobre a arte do poeta.
Freud defende até o fim da vida sua a confiança na pesquisa científica como única saída para resolver os problemas do indivíduo e da sociedade. O Forscher e o Dichter, o pensador, o pesquisador e o poeta, são testemunhas e paladinos da dignidade humana, "faróis que ainda hoje iluminam as trevas que envolvem o destino da humanidade”.
Freud foi um missivista infatigável
Karl Abraham, Sandor Ferenczi, Carl Jung, Lou Andreas-Salomé, Romain Rolland, Arnold e Stefan Zweig. Sua correspondência mais célebre foi com o amigo e médico especialista em otorrinolaringologia, Wilhelm Fliess. Corresponderam-se entre 1887- 1904. Magoado com o amigo (?), Freud destruiu as cartas recebidas. O sentimento de amizade e sua expressão epistolar parecem animar a elaboração intelectual de Freud, considera o amigo "o alter", "o único". Os momentos de exaltação afetiva quase lírica correspondem muitas vezes às proposições mais importantes de sua investigação científica.
Cipião e Berganza
Sigmund Freud e Eduard Silberstein são
apaixonados por palavras,
gostam de entreter-se com outros idiomas,
aprenderam sozinhos o espanhol.
Leram o Colóquio dos cães de Cervantes (Novelas exemplares), e se tratavam por Cipião e Berganza. Cães que falam, só fazem falar, Berganza conta suas aventuras, Cipião escuta, às vezes interrompe a narrativa. Um fala, o outro escuta, o colóquio poderia simbolizar o colóquio psicanalítico: "Espero você amanhã, no seu horário". A sessão continua. Freud leu Dom Quixote por volta dos 25 anos, no original. O grande destruidor de ilusões seguramente não se identifica com o engenhoso fidalgo, mas se entusiasmou pelo personagem, sua audácia, obstinação, até mesmo sua loucura, um conquistador à sua maneira. Talvez Freud tenha sido em outra vida um Quixote, capaz de aliar dentro de si a sabedoria e a loucura. "Todo delírio encerra um grão de verdade", segundo Freud.
Ludwig Borne
Freud no seu aniversário de 14 anos recebeu de seu pai os escritos de Ludwig Borne, publicados em 1862. Cinquenta anos mais tarde, redescobre Borne e seu artigo, um texto "Como tornar-se um escritor original em três dias". Como Freud pudera esquecer este texto, um quase recalcamento em relação à teoria psicanalítica, prenúncio do método da associação livre? Freud admite não ter sido sempre original, no entanto o que colocou em prática com seus pacientes é diferente das recomendações bem humoradas de Borne.
Josef Popper-Lynkeus
Popper-Lynkeus escreveu "Fabulações de um realista". No capítulo "Sonhar acordado" mostrava que o sonho é uma forma de pensamento e não é destituído de sentido. Freud reconhece em Popper-Lynkeus "parte essencial de minha teoria do sonho", e acrescenta que tomou conhecimento do artigo após terminar A interpretação dos sonhos. Considera o autor um idealista, sonhando com um mundo de harmonia no interior do indivíduo. Para Freud o que predomina, dentro e fora, é o conflito, mesmo no sonho.
Com e sem o Sr. Joyeuse
Freud leu Alphonse Daudet, certamente Safo citado em A interpretação dos sonhos e O nababo, citado na mesma obra. Comete alguns equívocos, reconhecerá esse duplo lapso na Psicopatologia da vida cotidiana, buscando uma explicação racional. Transforma Sr. Joyeuse em Sr. Jocelyn. Como não reconhecer o talento de Freud ao analisar, a posteriori, as peças que nossa memória nos prega, revelando as fontes de seus equívocos? Joyeuse é a forma feminina de joyeux (alegre), tradução francesa de seu próprio nome, Freud. O cientista da psicanálise não leu o último livro de Daudet, nem a publicação póstuma. Daudet morreu de sequelas da sífilis.
Pesquisa de opinião
Em 1907, o livreiro e editor vienense Hugo Heller consultou um pequeno grupo de "personalidades" que apontasse dez "bons livros". Nem um a mais. As respostas foram publicadas. Freud foi um dos consultados. O psicanalista enviou uma relação considerada por ele mesmo como extravagante. Freud não citará Shakespeare, Goethe, nem seus livros preferidos, para ele excluídos de qualquer juízo de valor. Freud embora cortês, secretamente zomba da entrevista e do entrevistador. "Está bom assim, caro Sr. Heller?".
A biblioteca de Freud
Durante toda vida Freud amou os livros, faziam parte de seu círculo mais querido. Parte de sua biblioteca o acompanhou em Londres. Poucos dias antes de morrer, Freud voltou sua atenção para La peau de chagrin (A pele de onagro), de Balzac: "Era justamente o livro de que necessitava; fala do encolhimento e da morte por inanição". Sua biblioteca em Viena continha mais de 2 mil volumes. Catalogada após sua morte, foi dividida em duas partes: a mais importante foi para Londres, casa do psicanalista. No futuro, Freud Museum. A outra parte foi vendida a um livreiro. Mais tarde seria resgatada pelo New York State Psychiatric Institute. Consistia em obras pertencentes a todos os gêneros: ciências do espírito e da natureza, biografias, relatos de viagem, literatura alemã e estrangeira. Shakespeare em edição inglesa e alemã, Dostoiévski, a quem admirava, obras completas de Flaubert na edição Conard (dezoito volumes), Maupassant (vinte volumes), Anatole France (21 volumes ilustrados). Dentre os autores de língua alemã, Goethe, Heine. Em destaque, entre os escritores contemporâneos, Thomas Mann, Arnold e Stefan Zweig. Nenhum sinal do seu "duplo", Arthur Schnitzler.
O mundo era povoado por
todo tipo de línguas e dialetos,
um mundo cuja língua secreta
se chamava inconsciente.
Goethe, Fundação Editora Unesp.
Vergänglichkeit
A transitoriedade
Breve ensaio escrito em 1905,
traduzido do alemão para o francês como
"Éphémere destinée”.
Um diálogo entre o pesquisador e o poeta, uma homenagem de Freud a Goethe. O jovem poeta não consegue admirar a beleza da paisagem, o destino efêmero de tudo que é humano o leva a uma desvalorização do que ama e admira. Para Freud “a exigência de eternidade", profundamente melancólica, seria consequência de nossa "vida de desejo". A raridade aumenta a satisfação que as coisas perecíveis nos proporcionam. O texto publicado em 1915, “Considerações atuais sobre a guerra e a morte”, é um exemplo claro do pensamento trágico de Freud sobre a condição humana, afirmando o valor da vida e da aceitação de sua fragilidade e finitude. O ensaio termina com a evocação do fim do luto e a libertação da libido; a libido pronta a reinvestir na vida e no mundo.
"Reconstruiremos tudo
que a guerra destruiu,
talvez sobre uma base mais sólida
e duradoura do que antes".
Sigmund Freud