Brasil Editor
Contemporâneo
Le Retour des Cendres
Túmulo de Napoleão Bonaparte / foto / acervo Brasil Editor.
La Belle Poule
Luis Filipe I e Thiers.
Mais um tiro, vários tiros, chega a monarquia de 1830, e coronel fugitivo Luis Filipe é consagrado rei da França. Em combate no exército revolucionário francês contra o Sacro Imperio Romano Germânico, acabou por juntar-se ao inimigo. Identificado na condição de conspirador, viu-se obrigado a refugiar-se na Suíça sob falsa identidade. Após a execução do pai em 1793, herda o título de duque de Orléans e, impulsionado na força inevitável do destino, assume o trono. Ele agora é Luis Filipe I, rei da França. No período napoleônico, entre 1804 e 1814, morou nos EUA e depois no Reino Unido. Mudou-se para a Sicília e casou-se com Maria Amélia de Bourbon, mais uma vez, a força inevitável do destino.
Em março de 1840, Marie Joseph Louis Adolphe Thiers, advogado e historiador, tornou-se primeiro-ministro. Louis Thiers teria sido um seguidor dos ideais da Revolução Francesa, acompanhou os movimentos de 1789. Mantinha contatos com vários seguidores de Napoleão, viveu o passado bonapartista. E no cargo de primeiro-ministro soube tirar proveito do momento diplomático favorável com a Inglaterra. Thiers consultou o rei Luis Filipe sobre o translado dos restos mortais de Napoleão Bonaparte que estavam em Santa Helena. Essa oportunidade não deveria ser adiada, o governo receberia apoio pupular, principalmente naqueles dias de crise, o episódio poderia se tornar um forte antídoto às várias ameças dos perigosos antagonistas. Queriam derrubar o rei.
Pressionado por Thiers, o rei Luis Filipe concorda com a extradição dos restos mortais de Napoleão. O embaixador francês em Londres, François Guizot, formula o pedido oficial ao governo de sua majestade. Logo os preparativos são iniciados, os ingleses recebem com simpatia o pedido provavelmente há muito aguardado.
La Belle Poule parte do porto de Toulon no dia 7 de julho de 1840, uma fragata de primeira classe. Na expedição comandada por Joinville, Francisco Fernado de Orléans, filho do rei Luis Filipe, levava a bordo consagrados colaboradores do imperador, entre eles, Henri Gatien Bertrand, marechal do império, Louis Joseph Narcisse Marchand, valete do imperador e liquidante na sucessão, Gaspar Gourgaud, general do império, senhores que paticipariam da cerimônia ao lado de outros franceses.
Ilha de Santa Helena, dia 9 de outubro. Após entrevista com o governador, a expedição francesa e os ingleses se dirigiram ao túmulo localizado em um vale, local escolhido por Napoleão, com a beleza e tranquilidade desejadas. Depois rezaram uma oração e se dirigiram a Longwood House. O estado degradado da casa assustou os visitantes, principalmente aqueles que ali estiveram com o imperador. O príncipe de Joinville preferiu permanecer a bordo da fragata La Belle Poule em sinal de protesto, os britânicos seriam os únicos responsáveis por exumarem o corpo do imperador.
Meia Noite do dia 15 de outubro. Sob forte chuva e após horas de trabalho, os inglêses chegaram à estrutura de alvenaria que cobria o caixão. Estava intacta. O trabalho seguiu por várias horas. “Senhores, apenas seis polegadas nos separa do caixão de Napoleão”, assim teria dito o comissário inglês ao perceber a proximidade da cobertura final. O pesado sarcófago começou a ser içado. Soldados levaram o caixão até uma tenda montada com requinte. Um momento emocionante de reflexão e orações. Bertrand, Gourgaud e Marchand eram os mais qualificados, iriam fazer o reconhecimento do corpo, tentar evitar uma fraude, um desastroso equívoco. Ansiedade e suspense, o corpo estaria em condiçoes de passar por exames, seria possível reconhecer o imperador?
Representante do rei Luis Filipe, Rohan-Chabot solicitou que o doutor Guillard abrisse o caixão. O primeiro de mógno já apodrecido, o segundo de chumbo, mais um de mogno em perfeitas condições e finalmente outro coberto por flandres. Aparece sobre o corpo um inesperado cetim. Guillard inicia a remoção do cetim, surge Napoleão Bonaparte. Vive l’impereur!
No Brasil
O jovem convidado daquela noite, magro, não muito alto, trajando preto no estilo que preservava, cabelos longos e escorridos, está na presença das mais significativas personalidades acostumadas aos periódicos concertos realizados nos hotéis ou casas dos mais ricos anfitriões, das mais ricas, dos mais sofisticados. Repleto como de costume, o salão seria palco para o talentoso músico. Sob a luminosidade atenuada do ambiente, as luzes de velas em castiçais de prata projetam sua figura nas paredes do salão. As mãos no teclado iniciam movimentos inesperados, inovadores.
Durante a execução surge uma figura exótica, de cartola, olhar penetrante, em direção ao músico mergulhado nas teclas. Talvez ele não tenha percebido a presença daquela senhora, ou talvez tenha notado, notado demais. De pé ao lado do piano, George Sand, na realidade Amandine Aurore Lucile Dupin, observa a exibição ao piano. Concentrado na apresentação, Fredéric François Chopin executa o Noturno, Op. 9, nº 2, uma das composições dedicadas à Camille Pleyel.
Chopin chegou a Paris em 1831, logo após a revolução de Luis Filipe I, o novo rei da França. Ouve-se ao longe um tiro de canhão. Outros viriam. O estado febril do povo francês ao receber Napoleão Bonaparte egresso da ilha de Santa Helena, soldados em farda de gala, bandeiras salpicadas de abelhas e águias douradas, carruagem puxada a cavalos com plumas negras, seriam momentos inesquecíveis de glória. Paris acolhia seu eterno imperador em fantástica cerimônia fúnebre. Vindos dos campos e recantos mais distantes da França; civis, religiosos, militares, artesãos, operários, mulheres e homens do povo ouviam em silêncio os 300 músicos executarem o Réquiem de Mozart. Napoleão Bonaparte retoma a França em 1840.
____________________
Em 1838, o príncipe Francisco Fernando D’Orléans visitou o Brasil e escreveu em seu diário “daqui só a natureza prestava”, chegou mesmo a ridicularizar os costumes de nossa terra. Mas o príncipe mudaria seu conceito, mudaria de opinião, mudaria de país, mudaria de nome. Os preparativos que antecederam o glorioso retorno de Napoleão Bonaparte a Paris tiveram seu inicio quase dois anos antes. A fragata de primeira classe, La Belle-Poule, pintada de negro como a carruagem, partiu em direção à ilha de Santa Helena sob o comando do príncipe de Joinville, aquele obrigado a mudar de opinião, filho do rei Luis Filipe. Nessa missão de resgate dos restos mortais de Napoleão, conhecida como Le Retour de Cendres, a fragata negra fez escala na Brasil: Bahia e depois Rio de Janeiro.
Voltou ao Brasil no ano de 1843. Dessa vez o príncipe viajou para se casar com a filha de Pedro I, irmã de Pedro II, Francisca de Bragança. Casados, eles regressaram a Paris. E na corte parisiense a nossa princesa era reconhecida como a mais bela, dizem. Francisca recebeu terras na Província de Santa Catarina, como parte de um dote. Mais tarde, bem mais tarde, essas terras seriam Joinville.
Na revolução de 1848, quando a família real francesa fugiu para a Inglaterra, o príncipe que mudou de opinião sobre o Brasil, mudaria de país, levou a família para Claremont, palácio ao estilo palladiano do século XVIII. Após a queda, ali viveria e morreria o rei Luis Filipe, pai do príncipe de Joinville. O dito príncipe, falido, vendera as terras em Santa Catarina e resolvera incorporar-se ao exército americano durante a guerra civil. Após a derrocada do império na França, década de 1870, o príncipe mudaria mais uma vez, mudaria de nome, passou a ser chamado de coronel Leitherod, pseudônimo americano que passou a usar durante o seu serviço militar no exército do Loire.
Soldados em farda de gala, bandeiras salpicadas de abelhas e águias douradas, carruagem puxada a cavalos com plumas negras, momentos inesquecíveis de glória vividos na França que recebia seu eterno imperador em fantástica cerimônia fúnebre. No meio do povo, Fredéric François Chopin e George Sand assistiam o cortejo na primeira fila. Chopin poderia imaginar que receberia um funeral idêntico 9 anos depois?
Princesa Francisca de Bragança e o prínipe Joinville.
A
Exceto aquele apodrecido, desnecessário, os demais foram colocados em um féretro de ébano, revestido internamente de chumbo, e finalmente acomodados no interior da grande urna funerária trabalhada em carvalho, material trazido da França. Sobre a tampa estavam as insígnias do imperador. Lia-se em relevo, Napoleão.
Chegaram em procissão à fragatala La Belle Poule e foram recebidos com salvas de canhões franceses e ingleses. O aparato de içamento do caixão necessitou de uma estratégia executada durante o dia. O capelão Abbé Félix Coquereau oficiou a missa. A seguir, a grande urna funerária seria transportada até à sala especialmente decorada, paredes cobertas de abelhas douradas, castiçais, esculturas de águias. Ao fundo, o altar. La Belle Poule deixa Santa Helena em 18 de outubro. Ao retornar à França, Coquereau publicaria suas lembranças desse momento histórico sob o título de “Souvenirs de Sainte-Hélène”, em 1841. Nas ilustrações, a reprodução do livro original e Coquereau.
Porto de Chebourg, França, 30 de novembro, a fragata La Belle Poule atraca. Infinitas filas de populares desejam fazer suas últimas homenagens ao homem que fora seu imperador por dez anos. Napoleão permaneceu no porto até 8 de dezembro, quando foi transfeido ao navio de menor porte, ele atravessaria o Sena em direção a Paris. Em 14 de dezembro, a flotilha chega ao porto de Courbevoie, perto de Paris. Jean de Dieu Soult, duque de Dalmácia e marechal do império, subiu a bordo do La Dorade, o navio de menor porte, e curvou-se à pessoa a quem devia suas realizações.
Paris, 15 de dezembro. Tiros de canhões clamam por seu imperador. O carro fúnebre está decorado com figuras e formas que lembram os templos da antiguidade clássica, abelhas e águias, e os nomes de grandes vitórias. Na chegada a Paris, gritos e aplausos. Vivre l’empereur!
Saint Louis des Invalides estava pronta para receber Napoleão. Bon-Adrien Jeannot de Moncey, duque de Conegliano e marechal do império, governador de Les Invalides, moribundo, doente, recebeu Napoleão e depois teria comentado “de volta à casa para morrer”. Terminado o culto, o corpo foi depositado na cripta. O túmulo monumental sob a cúpula onde Napoleão repousa foi concluído em 1861 e o translado, em 2 de abril. Desde então, centenas de milhares de pessoas a cada ano visitam o monumento.
Vivre l’empereur!
Medalhas cunhadas por ocasião da cerimônia Le Retour des Cendres.
A
Noturno em Madeleine
Vozes femininas entoam o Réquiem de Mozart na igreja de Madeleine. Tarjas de veludo negro pendem da fachada do templo construído ao estilo neoclássico, exibem ao centro o monograma bordado com as letras FC em prata. Vindas de todos os cantos, centenas, milhares de pessoas das mais diversas classes sociais querem ver de perto o cortejo. Parceira em vários concertos, emocionada, a voz do meio-soprano Pauline Viardot se destaca no coro e flutua nos agudos acima da orquestra. Carregado nos ombros por seis homens, o ataúde seguiu fechado do santuário até o catafalco ornamentado no transepto da igreja de Madeleine. É a despedida.
Duas semanas se passaram e o corpo embalsamado aguardou na cripta, enquanto amigos conseguiam licença especial do bispo de Paris. Desejavam o coro feminino dentro da igreja, coro naquela época proibido, seria então vetado às mulheres cantarem na igreja. Aparece a tão esperada autorização. Atrás de uma cortina de veludo negro, na realidade censurado, invisível, o coro atende ao último desejo do morto.
Segundo observadores anotaram, quatro mil compareceram à cerimônia fúnebre. Aluna e benfeitora do artista, a herdeira escocesa Jane Stirling pagou as cinco mil libras gastas no funeral do compositor. Os habitantes de Paris e os amigos não se esqueceram do pianista na última homenagem.
Na madrugada de quinta-feira, dia 17 de outubro de 1849, em seu apartamento naquele endereço nobre de Paris, o número 12 da Praça Vendôme, Fréderic François Chopin morreria nos braços de Solange, filha de George Sand, ao lado da irmã Ludwika e da miséria.
Depois da História
Estudos recentes de Wojciech Cichy, Da Faculdade de Medicina da
Universidade de Poznan, afastam a tuberculose e consideram a fibrose quística
como a causa da morte do compositor.
Ao esculpir a máscara mortuária de Chopin, Clésinger, casado com Solange, retirou a expressão de sofrimento, deu-lhe a paz merecida. Esculpiu um elenco de mãos do compositor e o monumento Euterpe, musa da música, escultura presente na sepultura de Chopin no cemitério de Pèrre Lachaise.
O irônico destino, nesse caso muito irônico, uniu Solange e a avó materna na mais antiga das profissões. Amiga de Chopin, a filha de Sand se tornaria prostituta, e o irmão Maurice nunca revelaria seu talento ao mundo, seguiria medíocre.
George Sand, Amandine Aurore Lucile Dupin, morreu em Nohat, no ano de 1876.
A escritora de fama conheceu Flaubert, Balzac, Zola, Sainte-Beuve, Baudelaire, Franz Listz, Robert Browning, Dostoievski e o pintor Eugène Delacroix.
A condessa Marie de Agoult e Franz Liszt resolveram brigar com Chopin,
invejavam o casal.
Há 150 anos desaparecido, o piano de cauda do compositor usado na Inglaterra
após a queda de Luis Felipe foi encontrado numa casa de campo e adquirido por duas mil libras. O colecionador britânico Alec Cobbe, atual dono do piano,
esconhecia a verdadeira procedência do instrumento..
A autenticidade foi comprovada durante pesquisas realizadas por Jean-Jacques Eigeldinger, nos arquivos da fabricante Camille Pleyel.
Consultas
Chopin, H. Bidou, Editora Guanabara, Waissman, Koogan, Rio de Janeiro, 1935.
O funeral de Chopin, Benita Eisler, Editora Planeta, 2005.
Delta Larrousse.
Histoire de ma vie, George Sand.
A última ilha do imperador, Julia Blackburn, 1993.
Reuters, Londres, Paul Majendie.