Brasil Editor
Contemporâneo
Histórias
da
Pisicanálise
Regina Pina
Sigmund Freud,
o criador da psicanálise
Fascinado por antigas civilizações,
Freud possuía enorme coleção de objetos
e relíquias, a maior parte levada para Londres
quando partiu da Áustria.
Relevos, bustos, fragmentos de papiro, anéis,
pedras preciosas e gravuras
se espalhavam na Berggasse, número 19,
seu consultório em Viena.
Apesar de não se considerar um conhecedor de arte, a coleção seria um catálogo das civilizações mundiais. Objetos raros, sagrados, enigmáticos, ataduras de múmias egípcias contendo inscrições de feitiços ligados à magia, e restos de pomada de embalsamento. Estátuas helenísticas, imagens de esfinge, tapetes persas, jade chinês, leões em tamanho pequeno. Sua coleção pode ser vista no Museu Freud, em Londres.
Antiguidades
Janine Burke escreveu Deuses de Freud, onde analisa a relação afetiva do pai da psicanálise com seus inúmeros objetos de arte. Colecionador obsessivo, Freud possuía quadros, esculturas, esfinges, totens de figuras míticas originárias da Grécia, Egito e Roma. Até o divã. Os pacientes se deitavam num tapete persa qashqai, que fazia par com outro preso à parede. Os objetos mostravam aspectos da personalidade de Freud. A autora nos traz citações de Freud: "o psicanalista, como o arqueólogo, deve escavar camada após camada da psique do paciente, antes de ter acesso aos mais profundos e valiosos tesouros".
Ao viajar, Freud sentia necessidade de levar os objetos com ele. "Eu preciso ter sempre um objeto para amar", confessou. O livro de Janine é repleto de fotos, itens expostos em Londres no "Freud Museum". Lá, o visitante encontra a urna onde foram depositadas as cinzas de Freud e sua esposa, Martha.
Interesse de Freud no ocultismo
Alguns biógrafos afirmam que parte do texto no livro A interpretação dos sonhos teve como base as pesquisas ligadas ao ocultismo. Do livro, o último capítulo foi retirado a pedido de Anna Freud. Fato jamais confirmado. O capítulo consistia em análise de sonhos premonitórios de uma paciente, discutidos por Freud com Ferenczi. Esses sonhos premonitórios poderiam criar impacto negativo na aceitação da comunidade médica. Freud estudou os fenômenos da telepatia e transferência de pensamento. Alguns médicos consideram a teoria junguiana uma forma de integrar a questão dos sonhos e a telepatia. Freud era filiado à Loja Filhos da Aliança, em Viena, desde 1897.
Percorreu os caminhos além do visível. O mundo inconsciente, misterioso, invisível. Basta pensarmos na sua teoria da pulsão de vida, pulsão de morte, algo além do mundo material. Escreveu sob o título Psicanálise e telepatia, em 1921, que este tipo de crença era uma tentativa de recuperar por meios sobrenaturais "o encanto perdido da vida nesta terra". O texto foi publicado vinte anos mais tarde. Na época, a publicação foi considerada prematura.
Sonhos e fantasmas
Abordou novamente o tema no texto O significado oculto dos sonhos, em 1925. A análise poderia revelar os fatores emocionais inconscientes, ao realizar um estudo sobre a transmissão de pensamento e sua relação com o subconsciente. Retomou o tema em 1933, com observações ainda não publicadas. Reconheceu por meio das associações livres o aviso telepático do fato conhecido como "Dr. Forsyth". E Dr. Forsyth visita Freud em 1919. O analista não pode recebê-lo.
Logo após a visita sem sucesso, chega a paciente que se referia a Freud como Senhor de Vorsicht (Senhor da Precaução). Transposição alemã do inglês "foresight". Teria ocorrido transmissão de pensamento entre o analista interessado na visita do Dr. Forsyth e a paciente que surge com a designação correspondente?
Fenômenos psíquicos
Em uma carta dirigida a Herreward Carington, em 1921, fez a seguinte declaração: "Não sou daqueles que recusam logo à primeira vista o estudo dos fenômenos psíquicos dito ocultismo, por ser anti-cientifico, indigno de um sábio, até mesmo perigoso. Se me encontrasse no princípio da minha vida científica em vez de estar no fim, talvez não escolhesse outro domínio de investigação, a despeito de todas as dificuldades que ele apresenta".
Surrealismo
Com a publicação do Manifesto Surrealista,
por volta de 1920 na França,
surge o surrealismo, movimento elaborado
em 1924 por André Breton,
psiquiatra francês.
Os artistas ligados ao movimento rejeitaram os valores impostos sob
pressão da burguesia e resolveram buscar inspiração em outras fontes. Em 1929 circula a revista A Revolução Socialista e o segundo Manifesto Surrealista. Entre outros, participaram do movimento o dramaturgo francês Antonin Artaud; os pintores espanhóis Salvador Dali e Joan Miró; os escritores franceses Jacques Prévert e Paul Éluard, entre outros artistas, escritores e intelectuais.
A década de 1930 foi o período de ouro do surrealismo no mundo. No final dos anos 1960, o grupo se dissolve. O surrealismo sofreu influência das teorias psicanalíticas de Sigmund Freud que mostravam a importância do inconsciente no processo criativo. Para produzir, criar, o indivíduo deve liberar suas fantasias, seu lado obscuro, primitivo, livrar-se da censura que o oprime.
Este processo seria a forma do ser humano lidar com seus conflitos, medos, emoções, angústias, transformando-as em algo produtivo e libertador.
Os cinco casos
paradigmáticos da clinica
psicanalítica
Estudos realizados por Sigmund Freud
O caso Dora,
fragmentos de uma análise
de histeria.
1905
Publicado por Freud em 1905, o relato da análise de Dora (Ida Bauer) é considerado o principal caso sobre histeria. Nessa época, Freud já trabalhava com associação livre e interpretação dos sonhos. Lacan se dedicou ao desejo da histérica, no caso Dora. Ida Bauer iniciou o tratamento com Freud por insistência do pai, em 1900. A análise terminou repentinamente onze semanas mais tarde. Os sintomas histéricos representavam o retorno à satisfação sexual primária, ou seja, à masturbação.
Os resíduos reprimidos das fantasias surgiram nos sintomas da doença. Na atitude sedutora do Sr. K, nasceu o pré-requisito para o desenvolvimento da histeria. Os sintomas histéricos representam os desejos recalcados no inconsciente. Sentimentos ambivalentes de amor e ódio.
A cura de Dora dependeria da aceitação desses impulsos infantis, as amnésias se tornariam conscientes. O caso fundamental para o entendimento da transferência mostra que Freud substituía o pai de Dora.
O caso do pequeno Hans,
uma análise de fobia
no menino de cinco anos.
1909
Max, pai de Hans, remetia cartas a Freud na tentativa de descobrir a incômoda fobia que afligia o filho Hans. Nas cartas, procurava informar a conduta da criança que odiava cavalos e tinha medo de ser mordido por um deles. Freud declara que as cartas de Max permitiram as interpretações sobre o caso, além das poucas visitas de Hans ao psicanalista.
Freud relacionou a fobia
por cavalos
ao Complexo de Édipo.
Ao desejar a mãe, Hans desenvolve hostilidade ao pai. O complexo de Édipo, no caso de Hans ainda não superado, conduz ao medo da castração. Portanto, os sentimentos hostis em relação a Max são recalcados. Surge, então, o sintoma. O medo de ser castigado por esse pai, visto como poderoso, é deslocado para o cavalo.
Na descoberta da sexualidade, Hans foi recriminado por sua mãe no momento em que iniciava a manipulação do órgão genital. Essa ameaça de castração é confirmada com o nascimento da irmãzinha. Hans observa que a menina não possuía o órgão genital. Era "castrada".
O objeto da fobia tem como função mascarar a angústia fundamental do sujeito. No caso de Hans, o cavalo ocupava o lugar desse objeto, além de representar o falo.
Freud orientou o pai a conversar com Hans sobre o significado do medo aos cavalos, fato que encobria o amor pela mãe. Tempos depois, Hans, adulto, encontrou Freud. Ele não se lembrava dos acontecimentos. "A análise foi superada pela própria amnésia". No histórico do pequeno Hans, Freud nos relata um caso de fobia onde aborda a teoria da sexualidade infantil. Apresenta o conceito de narcisismo primário e o seu desenvolvimento para a relação de objeto.
Observações sobre um caso
de neurose obsessiva.
O Homem dos Ratos.
1909
Por volta dos vinte anos, um jovem se preparava para a prova de habilitação. Ernst Lanzer desejava ser advogado, além de estar em treinamento militar. Procura por Freud, expõe seus pensamentos obsessivos relacionados aos desejos de morte do pai, já falecido. E os anseios amorosos em relação a uma determinada moça. Sua sexualidade sempre foi intensa. Aos seis anos apresentava ereções constantes, se culpando por isso. Freud diagnosticou como uma neurose obsessiva, em que o paciente já buscava formas de proteção contra a angústia.
Em uma das manobras militares, ouviu histórias sobre torturas: introduziam ratos nos anus das vítimas. Aquilo o impressionou muito. O militar que descreveu a tortura pagou o pince-nez de Ernst. O jovem desenvolveu uma fantasia sobre a dívida. Até pagá-la, ele, a namorada e o pai seriam punidos. Reviveu fatos da infância na neurose construída. O trabalho terapêutico propiciou ao paciente uma vida adequada.
Observações psicanalíticas sobre
um caso de paranoia
descrito com base
em dados autobiográficos.
1911
Memórias de um doente
dos nervos
Daniel Paul Schreber
Por meio das "Memórias", Freud estudou e desenvolveu o conceito de paranoia. Daniel Paul Schreber era filho do Dr. Daniel Gotlieb Moritz Schreber, famoso médico ortopedista e fundador da ginástica terapêutica na Alemanha. Além das atividades físicas, editou o livro Ginástica de quarto. Na Saxônia surgiram várias Associações Schreber, com o propósito de formar uma juventude harmoniosa, elevar o nível de saúde por meio da cultura física e do trabalho manual. Esses esforços tiveram efeitos duradouros no comportamento de Paul Schreber, segundo Freud,
Um fato determinante na vida de Paul. Aos 26 anos, o pai sofre um acidente. É atingido na cabeça por uma barra de ferro de um dos aparelhos de ginástica criado por ele. As sequelas cerebrais causaram a morte do pai, três anos mais tarde. O irmão passa a ocupar o lugar paterno em relação a Paul. A nova referência masculina seria outro caos. O irmão comete suicídio e Paul perde o “segundo” pai. A irmã mais nova, Sidonie, morre como doente mental, e para completar, a mãe era deprimida, com dificuldades de se expressar afetivamente. Várias vezes Paul tenta suicídio, inclusive no hospital onde esteve internado.
Freud não vivenciou este caso clinicamente, estudou com rigor a autobiografia de Paul Schreber. Aqui, o mecanismo da paranoia se constitui um enigma para o mestre. Assim como os sonhos, os delírios de Schreber são entendidos como expressões de desejos. Freud começa a pesquisa sobre a psicose, especialmente a paranoia. Delírios como mecanismo de defesa. Os delírios permaneceram, mas Schreber afirmava que não o incomodavam. Ao escrever o livro Como alguém se torna paranoico, Melman indaga: ”Era Schreber paranoico ou esquizofrênico?”.
Crises
No outono de 1884, surge a primeira crise. No final de 1885, Schreber estava "completamente curado”. Aos 42 anos, torna-se presidente do Tribunal Regional de Chemnitiz e se candidata às eleições parlamentares (Partido Nacional Liberal). Foi derrotado.
"O paciente se curou de um acesso grave de hipocondria", declarou o Dr. Flechsig. A segunda crise ocorreu em 1893, aos 52 anos, após ingressar em suas novas funções como presidente da Corte de Apelação em Dresden. Foi internado na terceira crise, em novembro de 1907. Rico, casado, profissionalmente bem sucedido, refinado, poliglota, excelente pianista. Seus delírios tomam emprestado o corpo, dúvidas surgem: seria ele feminino ou masculino? Viveu por oito anos com a mulher, período descrito como feliz, depois da primeira internação. Após a esposa fazer dois abortos, o casal adotaria uma menina. Promovido aos 51anos, passou a sonhar que estava doente. Surgiu a ideia de ser mulher, o que lhe poderia fazer bem, pensamento imediatamente rechaçado.
Meses após a nomeação, ocorre um segundo desmoronamento. Episódios de insônia, sensações de amolecimento cerebral, ideias de perseguição, intolerância ao barulho e à luz. Surgem as alucinações auditivas e visuais. Ele se via morto e decomposto, era a “lepra” que o atacava, sempre submetido por médicos a tratamentos repugnantes e assustadores. Mergulhou em estado de estupor alucinatório, desejava morrer, tentava o suicídio. As ideias delirantes foram acrescidas de intenso misticismo, aparições milagrosas, comunicações diretas com Deus. Os médicos teriam reduzido sua estatura, retirado os intestinos, quebrado as costelas e arrancado os nervos da cabeça.
Nasce o livro
Schreber vira o jogo no momento em que a vivência esquizofrênica atravessa o corpo: ele se transforma em mulher de Deus. O delírio toma a existência, resgata as aptidões intelectuais e constrói uma autobiografia, um verdadeiro tratado sobre a loucura. Sustentou perante o tribunal que poderia ocupar um lugar social sem internação ou curatela do Estado, o que conseguiu por alguns anos. Escreveu uma obra única que nos coloca em contato com a descrição minuciosa do fenômeno psicótico: o sujeito que por meio do delírio reconstrói a vida.
Freud
Para Freud os delírios relativos a Deus apontavam para a figura do pai, enérgica, severa. E sem o pai consanguíneo, talvez Schreber buscasse um substituto para a figura parental. A ausência de uma figura paterna forte pode desencadear a necessidade da presença de uma ordem que simbolize a lei. Deus, no caso. Parece que Paul Schreber conseguiu de alguma forma suprir a ausência do Nome do Pai. Em 1911, Paul Schreber morre aos 60 anos de idade, durante a internação no sanatório de Dozen.
Todo o livro de Schreber é permeado
pela amarga queixa de que Deus,
habituado
ao trato com os mortos,
não compreende os vivos.
Sigmund Freud
Da história
de uma neurose infantil.
Homem dos Lobos.
1918
Sergei Pankejeff, um aristocrata russo de 22 anos que procura Freud em Viena, devido a pesadelos, fobias e depressões, entre os anos de 1910 e 1914. O relato do analista se concentra na formação das fantasias relacionadas à cena primária. A análise se estabelece em torno de um sonho que a criança teve alguns dias antes do Natal, próximo ao seu quarto aniversário. A criança sonha que está na cama, súbito a janela se abre. Ele vê seis ou sete lobos brancos com longas caudas de raposa. Com medo de ser devorado por lobos, a criança grita e acorda.
Nas associações de ideias, Freud relaciona o sonho com a "cena primitiva" vista por Sergei com um ano e meio de idade. Seus pais em relação sexual, ambos vestidos de branco. Realidade ou fantasia? Curado após o tratamento, o Homem dos Lobos retorna à Rússia. A guerra e a Revolução de Outubro trouxeram os sintomas novamente.
Pioneirismo do termo. Verwerfung (rejeição) foi utilizado por Freud neste caso, seria a primeira vez. Rejeição da castração que o paciente desejava ignorar. Lacan continuará o trabalho e traduzirá verwerfung por foraclusão, rejeição definitiva do significado primordial, o significante Nome-do-Pai.
O homem da areia
Ernest Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann
1776-1822
De nacionalidade alemã,
escritor romântico,
compositor, desenhista,
jurista e um dos grandes nomes
da literatura fantástica.
Para o balé O Quebra-Nozes, Coppelia, famosa ópera de Jacques Offenbach, os contos de Hoffmann serviram de base e inspiraram a criação. Na ópera, Hoffmann aparece como personagem. De Robert Schumann, a Kreisleriana teve como base o personagem Johannes Kreisler, de Hoffmann.
O conto mais conhecido
O homem da areia data de 1815 e só foi publicado em 1817. Italo Calvino considera a obra fantástica, uma produção característica do século XIX. O tema é a realidade do que percebemos por trás do nosso cotidiano. Seria um mundo encantado, infernal, assustador? As imagens e personagens se transformam em seres grotescos e aparições diabólicas.
Olhos
Um ser perverso e maligno, o homem da areia surgia quando as crianças não queriam ir para a cama. Ele Jogava areia nos olhos das crianças que sangravam e saltavam das órbitas, depositava os olhos em um saco e os levava para alimentar seus filhos na lua.
Natanael cresce ouvindo esse conto da babá. Embora sua mãe dissesse que era apenas uma história, as repercussões internas seriam intensas. Natanael termina louco. Quando criança, escondido, observava um visitante assíduo: o advogado Copellius. Certa noite, uma inesperada explosão abala a história e mata o pai de Natanael. Com o passar do tempo, já adulto, Natanael recebe em casa um vendedor de barômetros de nome Copolla e o associa a Copellius. Noivo de Clara, já perturbado, Natanael escreve a seu cunhado Lotario e conta a experiência. Ressurgem as lembranças infantis.
Convencido da boa aquisição, Natanael compra um binóculo de Copolla. Ao experimentar a novidade, observa Olimpia. E por ela se apaixona. Ao perceber que Olimpia é uma boneca construída por Copolla/Copellius, enlouquece. É internado. Ao ser liberado do hospício tenta atirar a noiva Clara do alto de uma torre, torre da qual em breve se jogará.
O termo estranho
Em 1906, o termo estranho foi utilizado na psiquiatria por Ernst Jentsch. O psiquiatra relata os efeitos perturbadores obtidos quando o indivíduo é submetido à repetição contínua e automática de uma mesma situação. Ernst relaciona esta perturbação com manifestações de epilepsia e loucura.
Freud usou o termo estranho no ensaio "Der Unheimliche", de1919, em perspectiva analítica. O termo já havia sido utilizado por Hoffmann no ano de 1816, em perspectiva estética. O estranho, a inquietante estranheza, é um conceito freudiano que se refere a algo ou alguém familiar, que gera angústia, confusão ou estranhamento.
Na psicanálise
O olho e o olhar se relacionam com a pulsão escópica, assim a psicanálise nos mostra o conceito. O medo da cegueira seria um substituto do medo da castração que ocorre no Édipo. Quinet nos diz que o conceito de pulsão escópica permitiu à psicanálise mostrar o papel da visão além do seu desempenho físico, mostrar o olhar como fonte de libido. O olhar é objeto e causa de angústia: o olhar que vê e o olhar que vigia e pune, ligado ao superego. Mostra também a libido e o prazer de ver: o olhar como manifestação sexual, como zona erógena.
Hoffmann é o mestre incomparável do estranho na literatura, afirma Freud, ao analisar O homem da areia (Der Sandmann, 1816). Com base nesse conto, Freud estabelece os mecanismos inconscientes que agem ou estão presentes no horror que perturba o ser humano. O psicanalista constrói o conceito de estranho ou sinistro na psicanálise, correspondente à variante de angústia. Muitos indivíduos temem a escuridão na idade adulta. O que temem? Algo dentro de si mesmo. Schelling afirma: "O estranho é aquilo que está destinado a permanecer oculto e surgiu, veio à luz”.
O significado de estranho é ambíguo. A palavra se refere ao que está oculto ou secreto e ao mesmo tempo é familiar. Freud aponta para a relação entre o conceito de sinistro e o conceito de repressão. O sinistro remete ao complexo de castração infantil.
Pensadores
O tema estranho atraiu pensadores como Aristóteles, Santo Agostinho, Thomas Hobbes, Martin Heidegger, entre outros pensadores que investigaram os temores do ser humano frente ao estranho, ao desconhecido.
Das unheimliche foi publicado há 100 anos, em primeira edição de 1919. Em carta datada de 12 de maio do mesmo ano e enviada à Sandor Ferenczi, Freud informa ter "desenterrado" um velho trabalho. Desconhecemos a data exata da primeira versão do ensaio, mas as notas de rodapé indicam que seria posterior à publicação de Totem e Tabu, em 1913. No Brasil, o termo já foi traduzido como O estranho (1990), e O inquietante (2010). E na edição comemorativa, como O infamiliar (2019), tradução mais próxima do original em alemão. "Nada tem realmente de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento", segundo Freud.
Nossa mente escolhe o que manter
consciente e o que permanecerá
no inconsciente
como conteúdos recalcados.
Transformamos o conhecido em desconhecido
que se torna infamiliar e estranho.
Sigmund Freud
Na verdade, o que seria o temor de Natanael que tanto o assombra e o leva à loucura? Ao abrir a porta para o vendedor Copellius, a visão o remete à lembrança infantil. A lembrança seria o medo de Coppelius, Coppola, O homem da areia?
Charcot e as demonstrações.
O grito da seda
No setor de psiquiatria da chefatura de polícia,
é feita a triagem
dos indivíduos considerados loucos.
Por quase duas décadas, o Dr. Gaëtan Gatian de Clérambault, médico chefe do setor de psiquiatria, assistiu a prisão de mulheres de modesta posição. O crime? Pequenos furtos de tecido, em especial a seda. Em contato com a pele, a seda causava um prazer inexplicável. Não só as mulheres. Clérambault expunha sua paixão às roupas drapeadas dos povos árabes.
Clérambault viajou em terras do Marrocos, da Tunísia, onde observou mulheres e homens com seus drapeados. Colecionou 5000 fotos, arquivo exposto no livro de sua autoria sob o título A paixão erótica das mulheres pelos tecidos. Era um analista deslumbrado por ver as mulheres tocarem os drapeados árabes. Clérambault, 1872-1934, relata o distúrbio que acometia as mulheres, casos considerados curiosos na literatura psiquiátrica. O grito da seda, paixão erótica ligada à histeria.
Enviadas ao manicômio, as mulheres seriam proibidas do contato sexual com a seda. Clérambault publicou artigos em revistas científicas, mas esses estudos ficaram inacabados. Um deles se refere a Marie Benjamim, vítima da compulsão desde os sete anos. Diagnosticada por Clérambault como portadora de histeria e fetichismo, seu par amoroso era a seda. Nessa época, a sexualidade é negada às histéricas. Marie mostrou seu sintoma: a relação entre a sexualidade e a seda.
Em 17 de novembro de 1934, cego pela catarata, Clérambault se suicida frente ao espelho. Reflexo dos tempos. Não havia tratamento eficaz.
Último pedido
Colocar sobre o túmulo uma estela funerária árabe, estela esculpida por um artista marroquino em 1917. A família não permitiu. O desejo viria a se concretizar anos depois, quando a estela funerária foi localizada no depósito do Museu do Homem, em Paris.
Gravado em árabe
A quem visitar um dia nossa tumba:
Lembre-se do assalto da morte
Não seja vaidoso
Quantos daqueles que se julgavam preservados
Foram tragados pela fossa
Seja devoto e piedoso nesta vida e triunfará.
Clérambault, considerado médico brilhante, observador, despertou sentimentos hostis junto aos psiquiatras franceses diante da forma como dirigia os estudos e a própria vida. Dissecava a personalidade psíquica, os sintomas psicopatológicos de seus pacientes. Descobriu a síndrome do “automatismo mental”, síndrome presente nos psicóticos e a erotomania, conhecida como "Síndrome de Clérambault", uma convicção delirante apresentada geralmente por mulheres: acreditar que é amada por alguém, persegui-lo, e interpretar suas atitudes como sinais amorosos.
O desejo da mulher
Anna Karienina
"Para que um livro seja bom, deve-se amar a ideia mais simples e fundamental que o constitui. Sendo assim, amei a ideia sobre família em Anna Kariênina", disse Liev Tolstói a Sofia, sua esposa, em dois de março de 1877. No dia três de março, Sofia anotou as palavras em seu diário.
Ao pensarmos na mulher e seu desejo, a memória nos trás o romance Anna Karienina. A primeira edição é de 1877. Uma das narrativas principais se relaciona à personagem Anna, criada pela tia e posteriormente casada com Alexei Karenin, alguns anos mais velho. Anna percorre sonhos, desejos e suporta insatisfações. Constantemente frequenta salões, festas e bailes. Mas havia um vazio interior, um vácuo e a necessidade constante da busca inexplicável.
Quando o destino grita no momento incerto. O conde Vronsky cruza o caminho de Anna na estação de embarque, e um dos trabalhadores cai na linha do trem. A vida de Anna jamais seria a mesma. Eis que irrompe o desejo adormecido, a busca inexplicável. E o casal inicia uma relação amorosa.
Estamos na Rússia do século XIX, e as consequências seriam sérias. Anna decide abandonar o lar e viver com o amante. Breve uma filha. Repudiada na sociedade, cada vez mais exigente em relação ao amante, Kariênina usa morfina na hora de dormir. Diante desse desafio, só consegue ver uma saída: por fim ao sofrimento nos trilhos do trem. Início e fim no mesmo local.
Emma Bovary
Quando falamos de Anna Karienina, pensamos em Emma Bovary, de Gustave Flaubert. Emma pagou com a vida ao tentar encontrar a felicidade eterna, algo que jamais encontrou.
As traições representam mecanismos
de autodestruição fortemente ativados
no ser humano em busca
da morte do corpo ou da morte psíquica.
Sigmund Freud
Anna, Emma e outras personagens abandonaram seus lugares em busca de conquistas. Terminaram por pagar alto preço. O suicídio das personagens ocorre no momento em que suas vidas perdem o sentido e se deparam com o vácuo interior, inerente ao ser humano. Não encontraram o reconhecimento como mulher, como ser humano. Para existirem, necessitavam desse reconhecimento.
Como lidar com a angústia, o desespero, ao compreendermos a ausência da completude? Como lidar com o sentimento de “não existir, não pertencer”, ao percebermos que uma paixão pode ser passageira, fugaz? Poetas, escritores, psicanalistas já tentaram responder à pergunta que Freud se fazia: "O que quer uma mulher?”.
O desejo só cessa com a morte,
o ser humano é desejante, faltante,
sempre em busca da realização
dos seus desejos.
Jacques Lacan
Nascer é doloroso. A falta persistirá, o objeto amado e perdido não será recuperado, o indivíduo seguirá em busca da completude existente no útero materno. Expulso da mãe, participará da realidade externa. Rompe-se o vínculo, surge o vazio, a falta.
Spinoza, Freud, Lacan
Para Spinoza o homem é uma força desejante, a essência é desejar, o desejo representa a pulsão de vida. Para Freud o desejo é inconsciente, recalcado, proibido, sexualizado. Desejo de conquistar a mãe, desafiar os interditos, matar o pai. Lacan, leitor de Hegel, acreditava que o desejo é uma busca de reconhecimento impossível de saciar, incide sobre uma fantasia, é uma ilusão ou uma produção do imaginário. Talvez Anna Karienina e Emma Bovary não soubessem. Procuravam na realidade, na convivência, o que liam nos romances.
Deutsches Historisches Museum, Berlin.
Foto / Emil Bieber
Schnitzler,
Freud e a literatura
Escritor e médico austríaco, nascido em 1862 e falecido em 1931, Arthur Schnitzler cursou medicina e completou o mestrado em 1885, seguindo a carreira do pai Johann Schnitzler, um respeitado médico e diretor do hospital Allgemeine Poliklinik.
Interessado em psicologia, Schnitzler trabalhou com Theodor Meynert, professor de Freud, e realizou experiências com hipnose e sugestão, como técnicas terapêuticas. Em 1893 abriu uma clínica privada, mas seu interesse se dirigia à atividade literária. Várias vezes comparado a Freud, os romances abordam o subconsciente dos protagonistas e dedicam especial atenção às mulheres empobrecidas em luta contra a cruel realidade. Schnitzler analisa o lugar dessas mulheres na sociedade que não as amparava.
Utilizava a técnica "fluxo de consciência", técnica presente na obra de outros escritores como Virginia Woolf e James Joyce. A técnica consiste em influenciar o leitor ao apresentar o fluxo de pensamentos inconscientes e desorganizados da nossa mente. Sua obra, O tenente Gusti, é considerada uma das mais importantes e nos mostra por meio do monólogo interior a história de um homem atormentado. O personagem se culpa, sente-se covarde por não ter desafiado certo oponente a duelar.
Só lhe resta a morte. O personagem recebe inesperada notícia, pouco antes de disparar o revólver contra si. Este romance acarretou a expulsão de Schnitzler do cargo de médico da reserva do Exército. Schnitzler e Freud apresentavam semelhanças. Médicos e judeus, viveram intensamente a psicanálise. Em carta enviada a Arthur (1906), Freud confessa ter evitado conhecê-lo. O psicanalista o considerava na condição de seu "duplo", alguém que estudava "as verdades do inconsciente".
"Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações, parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios. Ficou-me a impressão de que tudo que tenho descoberto por meio de um laborioso trabalho, o senhor sabe por intuição". (Freud, 1922).
Schnitzler refletiu a sua época, mostrou agitações e mudanças ocorridas por meio das artes e literatura. Citamos algumas obras:
- O tenente Gusti (1900)
- Senhorita Else (1924)
Para salvar a sua família, Else cede
a desejos obscuros.
- Contos de amor e morte
(narrativas escritas entre 1887 e 1917).
Reunidas em um livro póstumo,
seus contos mostram a anatomia da loucura.
- Retorno de Casanova (1918).
Nesta última aventura de Casanova,
velho e decadente, um encontro inesperado
faz surgir o desejo.
- Breve romance de sonho (1926), transformado
em filme por Stanley Kubrick em 1999,
com o nome De olhos bem fechados.
- O médico das termas (Doutor Emil Grasler,
egoísta e monstruoso e mais quatro mulheres
que rondam seu destino.
- Crônica de uma vida de mulher (1928).
Thereza Fabiani, austríaca de família decadente,
procura seu caminho após a loucura do pai
e a desintegração da família.
- O caminho para a liberdade (1908),
um retrato da sociedade vienense da época.
Juventude em Viena, escrito entre 1915 e 1920, livro autobiográfico, trata de um documento que nos leva a compreender o autor durante determinada época importante da história da humanidade. Na passagem entre os séculos XIX e XX, Viena, econômica e culturalmente, era uma das capitais mais importantes do mundo, embora o autor já percebesse a decadência que viria. Um dos temas principais da obra é o antissemitismo presente na sociedade vienense da época. Uma das belas frases da sua autobiografia: "Nos lábios de uma mulher o sorriso da recordação jamais se apaga completamente. Elas são mais vingativas, mas também mais agradecidas do que os homens costumam ser”. A capital do Império Austro-húngaro foi o mundo de Robert Musil, Gustave Mahler, Sigmund Freud e Theodor Meynert, entre outros. Schnitzler foi chamado de "Tchekhov vienense e "Maupassant austríaco".
Sua obra é um mergulho profundo na alma humana: paixões, conflitos, tormentos do ser humano. Apresenta traços eróticos de forma séria e contundente. Antecipa Fernando Pessoa ao citar na peça Paracelso: "Não existe segurança em lugar nenhum. Não sabemos nada dos outros, nada de nós. Estamos sempre fingindo, quem sabe disso, é sábio".
Breve romance de sonho
Sobre os aspectos perturbadores
dos relacionamentos amorosos.
Com base nas teorias de Freud e interpretação dos sonhos, o autor nos mostra as neuroses da vida conjugal, suas infidelidades de forma sensual e aterradora. Misto de amor e terror, o livro contém aspectos eróticos e sombrios do ser humano na busca eterna do prazer carnal. Os protagonistas mostram emoções, sentimentos íntimos e frustrações. A narrativa pode ser considerada um suspense de terror psicológico. O leitor é arrastado para o mundo primitivo do medo e do sexo, onde ambos se entremeiam na parte mais instintiva do ser humano, sem limites, sem censura. O livro foi adaptado para o cinema, o último filme de Stanley Kubrick.
O baile das loucas
No século XIX, o termo loucura era usado para caracterizar pessoas que fugiam aos padrões de convivência. Mulheres internadas no Hospital Pitié-Salpêtrière, em Paris, com o diagnóstico de "loucas" por atitudes de rebeldia. No hospital, ocorria anualmente O baile das Loucas. A nata da sociedade. As internas participavam com as melhores vestimentas.
O Hospital foi projetado por Louis Le Vau, construído no século XVII. Antes o local abrigava uma fábrica de pólvora. O nome deriva do francês salpêtre, em português, salitre, um dos ingredientes da pólvora. Abrigava pobres, mendigos, desocupados, marginais, indivíduos perturbadores da ordem em Paris. Serviu como prisão para prostitutas, doentes mentais, criminosos com perturbações mentais, epilépticos e desamparados. Era atacado por constante população de ratos. Invadido durante a Revolução Francesa, a multidão preferiu as prostitutas em liberdade. E os doentes mentais foram assassinados. Salpêtrière passou a funcionar como asilo psiquiátrico para mulheres.
Jean-Martin Charcot
Pai da neurologia moderna, mentor de Freud, Pierre Janet, James Parkinson, entre outros, Jean-Martin Charcot foi durante vinte anos um dos mais importantes professores. Suas aulas ajudaram a descobrir a fisiopatologia de várias doenças, entre elas a epilepsia e a neurossífilis. Atualmente o local funciona como centro hospitalar universitário, abriga o Institut du cerveau et de la moelle épinière. Charcot tratou as histéricas por meio da hipnose, técnica apresentada em suas palestras públicas semanais. Os métodos foram contestados após sua morte. Nas palestras públicas, fotografava as pacientes sem as roupas para fins de arquivo.
Uma noite, nos meses de março, em plena Quaresma, os parisienses acostumados a óperas e peças teatrais convidavam as esposas para o baile na Salpêtrière. Casais de burgueses se misturavam às internas, com as melhores roupas. Alguns achavam que as internas eram motivo de zombarias na festa, outros viam como oportunidade de integração e divertimento das internas. O maior evento do ano, na opinião dos frequentadores. Baile patético, discordavam os demais.
Na época do hospital, Salpêtrière,
em local isolado e distante,
contava 4.000 pacientes alojados
em 27 hectares de terreno.
Charcot procurou entender os transtornos mentais, estudar a loucura, provar que as mulheres histéricas não estavam possuídas. As convulsões eram causadas por nervos e cérebros. Sigmund Freud provou ser a sexualidade reprimida o fator preponderante na histeria, o causador das convulsões. Apesar das críticas, Charcot dirigiu um olhar diferente, inovador, sem preconceitos às mulheres jogadas em manicômios e sem tratamento. Ele iniciou o que Freud viria a desenvolver na criação da psicanálise.
O humor não se resigna
O humor não se resigna,
ele desafia, implicando não apenas
o triunfo do eu,
mas também o princípio do prazer,
que assim encontra o meio
de se afirmar,
apesar das realidades
exteriores desfavoráveis.
Sigmund Freud
Em 1905, Freud escreve Os chistes e sua relação com o inconsciente, onde busca desvendar o valor do humor e do riso para a economia psíquica. Cita Hamlet de Shakespeare: "A fortuna de uma piada acha-se no ouvido de quem a ouve, jamais na linguagem de quem a contou". Considera o humor um dom precioso e raro, teimoso e rebelde. Quando escreve A interpretação dos sonhos (1900), Freud nota a presença de algo semelhante aos chistes nos relatos dos sonhos e comenta em carta dirigida a Fliess, em 11 de setembro 1899.
Enquanto escreve Os chistes e sua relação com o inconsciente, outros artigos são escritos e publicados: Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), seria um deles. Somente em 1927 retornará ao tema dos chistes. Ao estudar a lógica do inconsciente, percebe a manifestação por meio dos chistes, atos falhos, além dos sonhos. O chiste é descrito como a formação psíquica do inconsciente, assim como seu efeito humorístico. "Numa brincadeira pode-se até dizer a verdade", escreve Freud em seu artigo de 1905.
Abandono
A tese do humor é abandonada por seguidores da psicanálise, Winnicott e Ferenczi observam a importância do brincar na clinica psicanalítica e trazem contribuições ao tema. Lacan retoma a obra de Freud no texto As formações do inconsciente (1957-1958) e mostra a importância do humor no processo psicanalítico: "Os psicanalistas têm recobrado o humor, considerado como o outro lado do trágico, frente e verso, trágico e cômico, valioso recurso a ser utilizado na clinica psicanalítica e na vida".
Atualmente o chiste e o humor são considerados formas do indivíduo lidar com o mal-estar. Freud em sua correspondência com Fliess fala do interesse das piadas sobre judeus e como as colecionava, em carta datada de 12 de junho de 1897. O tema iniciado em 1905 foi relembrado por Freud 22 anos depois no ensaio O humor, de 1927, exatamente quando terminara Os chistes e sua relação com o inconsciente. O humor representa a vitória do princípio do prazer.
Freud fazia uso dos chistes e do humor não apenas nos seus textos, mas também em sua vida. Duas situações descritas por Peter Gay no livro Uma vida para nosso tempo, confirmam essa afirmação. Após a prisão e o interrogatório de sua filha Anna em 1938, Freud foi obrigado a assinar um documento para a Gestapo e confirmar a ausência de maus tratos: “Posso recomendar altamente a Gestapo a todos”.
Enforcamento e livros queimados
É conhecido o chiste de humor funesto descrito por Freud. Na manhã de certo dia, o condenado à morte é levado à execução e diz: "A semana está começando otimamente". Freud ao ser informado que seus livros seriam queimados em praça pública, na Alemanha, comentou: "Que progressos estamos fazendo. Na Idade Média teriam queimado a mim, hoje em dia se contentam em queimar meus livros".
No humor encontramos o desejo que se opõe à pulsão de morte que nos habita, mostra a impossibilidade de realização das nossas ilusões narcísicas. Representa a vitória do princípio do prazer, procura caminhos para a realização de seus desejos, enfrenta as dificuldades contra o real. O humor é rebelde e não se resigna, procura caminhos que o afastem do sofrimento.
O Mal estar na Civilização
No texto O Mal estar na Civilização (1930), Freud afirma que a pulsão de morte e a infelicidade fazem parte da condição trágica do ser humano. O humor seria uma das formas de procurar escapar ou amenizar o trágico existente em todos nós, ao exaltar a pulsão de vida. Estamos sempre ameaçados. A dor psíquica advinda da nossa condição humana, a morte, o envelhecimento, as doenças e as ameaças do mundo exterior. Assim como as manifestações artísticas, o humor é um dos caminhos para vencer o princípio da realidade na área da saúde psíquica, uma forma de sublimar as dores do existir. É a luta contra a pulsão de morte, por meio do nosso desejo.
O termo
O termo Witz, traduzido por chiste,
tem suas raízes no romantismo alemão.
O verbo wissen refere-se a um gaio saber.
Os franceses o traduzem como esprit,
algo espirituoso.
No cinema
No cinema vimos Charles Chaplin, assistimos O Gordo e o Magro (Laurel & Hardy) e Woody Allen. Na literatura, Cervantes e seu Dom Quixote, Tchekhov e os contos de drama somados à comédia, Nikolai Gogol, e outros.
Monumento Philippe Pinel, Paris
Alienista
Criador da psicanálise, Sigmund Freud
é considerado um dos
pensadores mais influentes do século XX.
Alienista. O significado do termo surgiu na França revolucionária e sobreviveu até o início do século XX. Nos séculos XVII e XVIII, na Europa, os doentes mentais vagavam nas ruas, sujos, maltrapilhos, ou cuidados por suas famílias. Juan Carlos Stagnaro nos mostra a tragédia no livro O nascimento da psiquiatria: um movimento europeu. Nas monarquias, muitos doentes seriam aprisionados em hospitais com a finalidade de retirá-los da sociedade.
França. Durante o reinado de Luís XVI, o movimento inspirado nas ideias de Jean-Jacques Rousseau revelou as péssimas condições desses doentes. Sob pressão, o rei confiou ao inspetor geral de hospitais civis e prisões do Reino, Jean Colombier e seu assistente, François Doublet, a elaboração de um documento: “... milhares de insanos são trancados nas prisões sem que ninguém pense no menor remédio", diz o documento.
Pensamentos de Colombier
"O semilouco se confunde com o louco perdido, o furioso com o louco tranquilo: alguns são acorrentados, outros são deixados em liberdade em seu cárcere."
"Em suma, a menos que a natureza venha em seu auxílio e os cure, o fim de seus males é o de seus dias e, infelizmente, até então, a doença só faz aumentar, em vez de diminuir."
Libertando a loucura dos grilhões
As reformas foram interrompidas na Revolução Francesa, reformas a seguir retomadas. O atendimento aos alienados foi reformulado segundo os Direitos do Homem, direitos instituídos na revolução. Mudanças idênticas ocorreram em outros países. Em 1808, na Alemanha, o médico e anatomista Christian Reil defendeu a criação de uma disciplina médica chamada psiquiatria. Era preciso entender o alienado, só assim ele poderia receber o tratamento correto.
Phippe Pinel, médico francês, estudou na faculdade de Medicina de Montpellier, importante centro de debates e aprendizado médico, fundada em 1220. Frequentava os círculos de escritores, cientistas, pessoas imbuídas das ideias iluministas. Em 1793, Pinel foi nomeado médico chefe do Hospital de Bicêtre no governo revolucionário. Após observar as condições precárias dos alienados, solicitou à Assembleia Nacional permissão para retirar as correntes dos doentes mentais. "Libertando a loucura dos grilhões", disseram alguns, enquanto outros censuravam a nova postura. No século XIX, o tratamento ainda incluía chicotadas, máquinas giratórias, sangrias.
Pinel observou os doentes mentais, a influência da hereditariedade na evolução do distúrbio mental, possibilitou estudos e viu durante o século XIX a continuidade de seu trabalho por outros alienistas. Identificou três causas para explicar a loucura:
1) Causas físicas
2) Hereditariedade
3) Causas morais - paixões intensas - costumes
e hábitos irregulares.
Defendia a cura da loucura por meio de medicamentos, mudança de hábitos, trabalho e lazer. No ano de 1795, Pinel foi trabalhar no hospital Salpetrière e deixou o discípulo Jean-Etienne Dominique Esquirol. Pinel morreu de pneumonia em 1826.
Há sempre um resto de razão
no mais alienado dos alienados.
Philippe Pinel
Esquirol deu continuidade ao trabalho de Pinel. Reformou asilos e hospícios franceses, fundou o primeiro curso para o tratamento das doenças mentais e lutou na criação da primeira Lei de Alienados na França. No Brasil, a primeira instituição criada para tratar doentes mentais foi o Hospício de Pedro II.
Antiguidade
Na Grécia, a loucura tinha um caráter mitológico misturado à normalidade. O louco era considerado uma ponte em direção ao oculto, muitas vezes consultavam decisões dos deuses. A epilepsia era considerada um dom sagrado.
Idade Média
Na Idade Média a doença era algo demoníaco. Indivíduos com dificuldades mentais estariam sujeitos a punições físicas, espancamentos. Seria necessário expulsar o mal com tratamentos cruéis, dolorosos. Mergulhados em água fervente, os doentes aguardavam o “mal” ser expulso, ou morriam queimados. As ideias ocultistas predominavam, seria imperativo eliminar os maus espíritos com práticas inquisitoriais sob controle da Igreja. Mas se a família pudesse pagar, os doentes seriam enviados para uma propriedade pertencente ao clero e recebiam outro tipo de tratamento.
Escorraçavam os loucos, principalmente os de origem estrangeira. Entregues a grupos de mercadores e peregrinos, colocados à força em barcos, partiam para outras cidades. Vagavam de cidade em cidade.
Foto / Iñaki del Olmo
Dostoiévski e Flaubert,
202 anos de nascimento
11 de novembro
12 de dezembro de 1821
Dois escritores marcaram o início de uma caminhada nas páginas do Realismo, há 200 anos. Os autores promoveram uma revolução no romance moderno, na ficção, na figura do narrador.
Os legados opostos não impediram a
genialidade de ambos
Gustave Flaubert
Gustave Flaubert nasceu em família rica, vivia da renda herdada do pai. Escrevia, reescrevia, escrevia outra vez os romances. Conjugava arte e realidade, preocupado com o enredo, a sintaxe e o conteúdo. Da humanidade, extrai somente o pessimismo embebido na ironia. Flaubert marcou a literatura francesa ao analisar com profundidade o comportamento psicológico e social dos personagens.
Flaubert é considerado um mestre do Realismo, o movimento estético de reação ao Romantismo europeu do século XIX. Influenciado por teorias científicas e a revolução industrial, adotou a linha filosófica de Augusto Comte, criador do Positivismo. Flaubert e Baudelaire se destacaram na literatura do século XIX. O romance Madame Bovary sofreu a crítica feroz daquela época.
Fiódor Dostoiévski
Fiódor Dostoiévski, pobre, sempre endividado, filho de pai alcoólatra, escrevia na tentativa de pagar as dívidas. Adotava a polifonia de vozes: exaltava as dores, os sofrimentos, as angústias dos personagens. Seus valentes intérpretes eram vítimas de conflitos, demônios à solta no mundo, seres em busca de redenção.
Fluxo de consciência, a marca fundamental nos temas abordados por Dostoiévski, conseguiu influenciar Virgínia Woolf, Nietzsche, James Joyce, Freud e outros. O autor narrava cenas febris, dramáticas, apaixonantes, desesperadoras... patologias e perversões. Era o mal que se abatia nos inocentes, era a busca por Deus.
“O homem precisa ir ao fundo do poço, encontrar a lama, conseguindo retornar das profundezas encontrará a redenção”.