Brasil Editor
Contemporâneo
Conspiração dos Lobos
Sérgio dos Santos Netto
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Interior de Cluny / foto / acervo Brasil Editor.
Caninos sangrentos
Foi naquele entardecer um tanto cinza um tanto resto de claridade, entardecer quase nebuloso, debaixo de pingos que começam a pingar. Um homem segue em frente com os sapatos de couro enfiados no lama, um camponês cansado e ansioso, ele vem do trabalho árduo, traz pouco dinheiro e muito sacrifício. Acostumado ao repetido retorno diário, desejoso da volta ao lar e à família, o camponês não percebe a sorrateira ameaça oculta entre as árvores do bosque. Perto das ruas espremidas entre construções de madeira e telhados toscos inclinados, uma casa ao lado da outra, a maioria desprovida de alinhamento, o camponês precisa caminhar um pouco mais, muito pouco, está prestes a chegar em casa, rever a família que o aguarda.
Dedicados ao trabalho mal remunerado, homens e mulheres retornam às moradias desconfortáveis, casas de chão, aquecidas à lenha cortada no frio das noites mais frias. Aumentam os pingos, a chuva aperta, o retardatário camponês encontra as ruas vazias. Súbito algo ameaçador dispara atrás da vítima solitária. A luz de uma pequena lanterna a óleo sacode de um lado ao outro, pendurada na mão direita, mão calejada daquele trabalho no campo. É noite no vilarejo. O pavor toma conta do camponês, o medo solta um grito, treme a luz treme a carne, o homem sobe uma ladeira de pedras escorregadias, dobra uma esquina entre duas casas, entra num beco sem nome e sem saída. O cansaço e a lanterna quase apagada anunciam o fim.
Escorrega, cai no chão e logo é cercado. Ele aperta contra o peito o crucifixo de madeira pendurado no pescoço. Mordem as pernas, arrancam as vísceras da barriga, arrastam o corpo mutilado entre as pedras molhadas do calçamento irregular. Ao longe os berros são ouvidos até o último gemido. Agora o silêncio percorre as ruas, nada mais se escuta. Mergulhados na poça vermelha, misturados às sobras de roupa rasgada, estão o crucifixo de madeira e a pequena lanterna apagada. Terminado o banquete, os participantes carregam o que conseguem carregar.
Após a claridade da manhã perfurar a neblina, os moradores do vilarejo constatam mais um ataque, desta vez ao indefeso vizinho. De hábito, o espólio da carnificina seria atirado ao rio ou na vala comum, no entanto os restos do camponês mereceram um enterro digno. Afinal, era um religioso.
Estamos na Idade Média. Entre pingos de chuva e de sangue, mercadores e prostitutas, artesãos e monges, homens e mulheres com roupas compridas e toucas sobre as orelhas, lanterna na mão, crucifixo no peito, reza na cabeça, trabalho no campo e no artesanato, camponeses e mercadores sem dinheiro se lançam na estrada e na aventura, saem do lugar de origem, desafiam os perigos de cidade em cidade, procuram “lugares de perdição e de devassidão onde triunfam a violência e a grosseria”. São aventureiros e vagabundos atrás de lucro rápido, às vezes em caravanas, às vezes sozinhos.
Superpovoamento, guerras, fome, foram esses os motivos principais que empurraram enorme população de mendigos às estradas. Para espanto dos mais pobres e dos mais ricos, alguns deles conquistaram fortunas. Henri Pirenne escreveu a respeito desses aventureiros no ano 1000. Século após século, as páginas da história cobriram o chão de batalhas, margearam com pedras o rio que divide a cidade, fizeram soar os sinos da catedral construída na pequena ilha no meio daquele rio, coloriram vitrais de extraordinária beleza, dividiram terras, criaram fronteiras, mataram reis e rainhas.
Lutece, “lama” em latim, o lugar não era mais um vilarejo, nome nada lisonjeiro escolhido por conquistadores romanos, nome abominável e sem futuro, nome que a cidade não aceitaria, não queria ser Lutece, a cidade queria ser Paris.
As pedras do calçamento das ruas desapareceriam no tempo, perdidas ou arrancadas, já os lobos acostumados ao gosto adocicado da carne humana continuariam a caçada. O trabalho era mal remunerado, mas aquele camponês vivia feliz, queria voltar para casa, ver a família, o fogão à lenha, e saborear a comida quase pronta. Faltou pouco. Os lobos saborearam primeiro.
Vamos separar a lenda dos fatos. Alguns personagens foram construídos ao gosto do imaginário popular, lobisomens, bruxas e demônios, personagens que formariam a fantasia alimentada com requintes durante o período da Inquisição. Um deles, animal de hábitos noturnos atrás de carne, o lobo cinzento inspirou a lenda do homem que vira lobo. Os que dilaceraram aquele mercador viveram na Idade Média, esse longo espaço de tempo calculado em torno de mil anos, período situado entre o término da Antiguidade e o início da Idade Moderna. Ou seja, a queda do império romano no ocidente com a deposição do imperador Rômulo Augusto, episódio ocorrido no ano de 476 e a chegada dos turcos em Constantinopla, em 1453. Sem unanimidade, alguns pesquisadores preferem encerrar a Idade Média no ano de 1500, com o descobrimento do Brasil. Na contagem clássica encontraremos 977 anos, se incluirmos o Brasil, passará de 1000 anos.
Teve início na mitologia grega. Resultado de punição imposta por Zeus, a lenda do licantropo atingiu o ápice na Idade Média. Lobisomens, bruxas e demônios foram responsáveis por incontáveis mortes de humanos nas fogueiras ou atirados nos rios com pedras amarradas aos pés. Tanta crença nos leva a desconfiar da existência de um recanto no cérebro capaz de esconder estranhos neurônios, micro matéria geradora de uma força que abandona a lógica em troca de pura imaginação. "O homem teme tudo, por ser mortal; e deseja tudo, como se fosse imortal", escreveu Pierre Nicole, pensador do século XVII.
Voltando à carne humana, ela vicia o paladar. Atrás do sabor adocicado, a matilha atravessava campos recheados de ovelhas, partia de esconderijos distantes até às ruas da cidade. E o grupo sob a liderança do lobo alfa preferia arriscar travessias repletas de armadilhas, dispensar a presa fácil, e investir contra os moradores. Mas se a prática era das feras, como assegurar o sabor adocicado da carne humana. Você provou? Os lobos rondaram os campos da França até o início do século XX. Os últimos foram expulsos das cidades, da carne de sabor adocicado, isolodos nas montanhas dos Alpes.
Essas feras não desenvolveram articulação craniana idêntica a dos carnívoros de maior porte, uma articulação capaz de quebrar o pescoço da caça e precipitar a morte. Os caninos perfuram a carne, as mandíbulas rasgam os tecidos e mastigam a vítima viva. O maior dos canídeos, o lobo europeu é um sobrevivente da Era do Gelo. Audição apurada há trezentos mil anos, visão noturna privilegiada embaixo da camada espelhada das retinas, olfato cem vezes superior ao do ser humano, velocidade de 65 quilômetros por hora e quase dois metros de comprimento, a cauda incluída.
Os lobos voltarão a Paris?
Cumplicidade
Acostumado de século em século a receber milhares de cadáveres como saldo de batalhas, o rio Sena acolhera o sangue da História. Aconteceu no dia de São Bartolomeu, em 1572. Nesse período, o Brasil seria dividido em dois governos após a morte de Mem de Sá. Um deles sediado na Bahia, o outro no Rio de Janeiro. E o país só voltaria a ser unificado em 1774, por determinação do Marques de Pombal. Na madrugada de 24 de agosto, data do santo, cortaram a cabeça de Coligny, líder dos huguenotes, e os católicos dizimaram os protestantes sob o consentimento do rei Carlos IX e determinação de Catarina, sua mãe. O rio cheio de cadáveres ameaçou Paris com epidemias, não se bebia a água do Sena, e Catarina de Médici comemorou o projeto bem sucedido. Ela bebia água de outra fonte, da fonte do poder.
Incertezas reprimidas, dúvidas não confessadas, cumplicidade silenciosa. Lucienne improvisa o roteiro. Caminharemos entre as barracas dos buquinistas, vendedores de livros repletos de personagens exóticos, testemunhas dos nossos passeios improvisados.
Os gritos do passado não querem cessar, continuam nas páginas dos livros, nas águas do rio, na pequena folha dourada de outono serpenteando no ar, perdida no rumo certo. Livreiros organizados na época de Napoleão III, os bouquinistes mostram livros antigos, inéditos, temas surpreendentes, imagens de outras décadas.
No próximo café, saborearmos um cappuccino quente. Da janela podíamos ver Notre Dame e ouvir os sinos da catedral que há mais de 850 anos observam as batalhas, a vida e a morte. Fizemos um minuto de silêncio, e pensativos imaginávamos qual teria sido a parte da história que as chamas levaram.
Existiam senhores contrabandistas de livros proibidos, comerciantes no Ancien Régime que faziam encomendas fora da França. Após abandonar a posição de autor de letras permitidas e passar aos escritos proibidos, Mouvelain resolveu encomendar livros nas editoras da Suíça, ingressou sem restrições no contrabando das edições proibidas e tornou-se um comerciante respeitado. No século XVIII os contrabandistas ofereciam seguro das mercadorias transportadas e reembolsavam os compradores com base no preço de atacado, caso os livros fossem apreendidos.
O sistema montado aos cuidados do criativo Faivre funcionava no modelo de empresa organizada. Esse senhor reuniu equipes e lideranças experientes que atravessavam as fronteiras ao anoitecer, percorriam trilhas abertas nas montanhas cobertas de frio, transportavam nas costas pacotes de vinte quilos, às vezes bem mais, rumavam em direção a Pontarlier. Todos conheciam os perigos além das montanhas cobertas de frio, conheciam as punições existentes. Os transportadores capturados por agentes da alfândega francesa poderiam passar o resto das vidas nas galés, em alto mar.
Tudo corria bem, bem mesmo, até os agentes confiscarem cinco engradados do opúsculo pornográfico de Mirabeau, “Le libertin de qualité”, em agosto de 1784. Faivre não foi o comerciante contratado desta vez. E como ocorre em momentos de proibições, a repressão aos comerciantes clandestinos aumentou o soborno distribuído aos funcionários do governo, e dos espiões que vendiam informações seguras à polícia. A propina era oferecida em dinheiro e acompanhada de certa quantidade de livros pornográficos. Após confiscarem os requisitados opúsculos de Mirabeau, um dos autores preferidos à época, o contrabando voltou e os livros proibidos passaram a cursar novas trilhas sem oposição das autoridades. Voltaire, Montesquieu, Diderot, Rousseau não apareciam nas listas das encomendas dos contrabandistas, já os iluministas considerados populistas faziam surpreendente sucesso.
Olhamos Notre Dame mais uma vez, tomamos outro cappuccino e voltamos aos buquinistas. Na primeira barraca, indagamos com seriedade sobre a obra rara, museológica:
“O senhor tem o opúsculo pornográfico de Mirabeau, “Le libertin de qualité”, livro proibido nos idos de 1784?”
O livreiro sorriu e mostrou uma pilha de revistas do gênero. Servem estas?
Notre Dame de Paris / foto / acervo Brasil Editor.
Arte de seduzir
Quando a memória genética resgatar os impulsos naturais adormecidos há séculos, eles voltarão a perseguir o sabor adocicado que outras gerações experimentaram em disputados banquetes.
Grades de ferro exibem o estilo art nouveau das construções pertencentes a um passado de beleza sem limites, fincadas nas espirais das escadas junto aos degraus de mármore. Em ritmo lento, subo degrau por degrau até encontrar aquela antiga porta de madeira trabalhada. A porta se abre. Olho o rosto e abraço o corpo. Sentamos no sofá macio forrado em veludo, iniciamos a viagem imaginária nos séculos que nos trouxeram a invenção da universidade, do relógio, dos óculos, da imprensa, do jogo de xadrez, do espelho, do botão de camisa e das crenças que causaram e ainda causam o medo no ocidente. Passeamos de mãos dadas na Idade Média, visitamos igrejas construídas em pedras carregadas uma por uma no trabalho árduo quase sem fim. De pedra em pedra, nascia o arco gótico equilibrado na confluência das curvas sobre as cabeças encapuzadas dos trabalhadores medievos.
A construção na ilha de la Cité foi iniciada em 1163, no reinado de Luis VII, quando o bispo Maurice de Sully propôs uma igreja dedicada à Virgem Maria, edificada no mesmo local da antiga Saint-Etienne. Concluída quase dois séculos depois, e apesar das influências arquitetônicas recebidas de Sully, a catedral exibe o esplêndido estilo gótico. Guerras, vandalismos e abandonos deformaram o jeito inicial da construção até a obra de restauro realizada a partir de 1990. Hoje vive outro restauro após o incêndio profano.
Voltamos ao conforto do sofá macio forrado em veludo, conforto do qual em nenhum momento nos apartamos. Olho Lucienne de baixo para cima, hábito que não desprezo, e nunca desprezarei. Pernas na diagonal, meias compridas, botas de couro, vestido cinza, laço de veludo negro no cabelo, olhos que brilham na penumbra. Sim, na penumbra. A imagem refletida de costas no grande espelho da sala sugere a pintura do artista da renascença, e o laço de veludo negro fornece o acabamento. Afinal quem é Luciene, a nossa anfitriã que abriu a porta de madeira trabalhada?
Há muito não tenho contato com objetos antigos expostos em residências. São quadros, esculturas, porcelanas da Companhia das Índias, antiguidades selecionadas. Lucienne está novíssima perto dos trinta e mais alguns. Os vidros da janela do apartamento permitem admirar o cenário lá fora. Chove novamente, o ciclo se repete desde o primeiro pingo. Minha anfitriã prepara o gourmet trazido da terra do café, produto de qualidade destinado à exportação, escolhido por mim quando sai do Rio de Janeiro e presenteado agora.
Nas tabernas medievais, sentados às mesas no andar de baixo, ou hospedados na parte de cima, os peregrinos da Idade Média estariam atrás do prazer e da segurança. Bebiam cerveja, vinho, cidra, mas desconheciam o sabor do café, não imaginavam a bebida que chegaria à Europa alguns séculos depois. O gourmet em duas xícaras de porcelana fina exala o aroma dos grãos selecionados. Lucienne me olha com olhar fixo, por inteiro. Na sala, o café e a leve fumaça das xícaras, o aroma brasileiro e as pernas francesas. Lá fora a chuva fina.
Pesquisas realizadas, eu e Lucienne não descobrimos nenhuma palavra proferida por vítimas fatais durante ataques de lobos. Somente gritos, segundo depoimentos registrados em livros daqueles que ouviram macabros uivos e gemidos ao longe... bem ao longe. Mastigadas vivas, engolidas aos pedaços, seria improvável conseguir voluntários dispostos a registros da cena final. Os lobos também são vítimas. “Lobos são canibais. Semanas sem encontrar comida, fome incontrolável, lobos comem lobos em comportamento contrário ao ditado popular, e preferem os filhotes indefesos”, está no livro que tenta registrar momentos da época.
Do homem que se transforma em lobisomem, a lenda é tema recorrente entre aqueles que estudam o comportamento cotidiano dos lobos, seus ataques ocorridos na Idade Média, nossa especialidade, e os ataques nos dias de hoje. Seriam os abades adeptos da lenda? Na ordem religiosa criada a partir da célebre abadia fundada na Borgonha em 909, Cluny, detentora de considerável fortuna, representante do papa na Europa, controlava a população. E o recurso usado era o medo. Seriam os criadores da medonha história de bruxas, demônios e outras criaturas fantásticas como o lobisomem?
O sétimo filho, homem ou mulher, e o filho do padre serão lobisomens. Esta parece ser a única referência à mulher, entre as muitas versões sobre a lenda. A escolha do número sete, a invenção da geração maldita e a referência ao filho do padre são influências religiosas. O sete é um número expressivo. Os sete selos da Bíblia, os sete pecados capitais, os sete dias da semana, o descanso no sétimo dia...
Dias lentos, meses esticados. O laço de veludo negro exposto à luz do abajur repousa agora em cima da pequena mesa dos avós, ao lado das meias, das botas de couro. Sozinha e nua, envolta em lençóis desarrumados com o movimento das pernas francesas como ela, Lucienne está na penumbra. Das partes mais profundas do inconsciente brota um instinto feroz. À cata de esclarecer os hábitos da espécie há muito banida das ruas de Paris, a moça experimenta a excitação dos olhos brilhantes e sente o desejo de ser loba. Longas pernas, olhos brilhantes, pelos aveludados, dentes que mordem, presas que dilaceraram. Lucienne imagina o corpo em mutação. O início, a plenitude. No entanto a manifestação do fenômeno depende de circunstâncias improváveis, e Lucienne conhece bem o improvável.
Movimentos rápidos no grande espelho da sala executados de cima a baixo, de lado a lado. Seios perfeitos, curvas alongadas, cabelos compridos. Uma experiência solitária, instigante. Visão, audição, olfato, paladar, tato, foram os sentidos relacionados por Aristóteles. Suficientes? Até pouco tempo sim. Mas a ciência atual acrescentou a percepção de calor, o equilíbrio, a dor e a propriocepção ou sentido da consciência do corpo.
Mas não conseguiram classificar a percepção da presença ameaçadora, sentir o cheiro das feras sem ver as feras, ouvir os uivos ao longe, desejar com intensidade o momento mágico. Fazia tempo Lucienne não admirava o próprio perfil. Atira ao longe a última peça do vestiário, o laço de veludo negro, apunhala o vento com os cabelos compridos na dança que resolve dançar sem perder o equilíbrio. Escorre o suor entre as pernas, a imagem se multiplica, o corpo é puxado na espiral molhada, o uivo e o cheiro das feras tomam conta do ambiente.
No espelho somente a imagem refletida, a projeção dos movimentos incontidos. No sentimento, o intenso desejo de viver o momento mágico que afinal chegou.
Eu já havia partido, voltei ao Rio e não pude assistir o que Lucienne me contaria em outra viagem. Contou-me com palavras simples o que tentei reproduzir com fidelidade ao acrescentar um toque dramático à narrativa. Nada além.
Notre Dame de Paris / foto / Thomas Millot.
Dança íntima
Sinto um frio perfurar o estômago, uma crença assustadora se apodera do ponto mais frágil, lembranças de um passado distante invadem minhas entranhas, surgem dois pontos luminosos à minha frente. Ouço uivos, algo fora de controle queima dentro do meu peito, ameaça o equilíbrio. Meu instinto atende ao sinal.
De camada em camada, uma elevação inevitável no tempo, o solo da ilha de la Cité subiu ao ponto de engolir os onze degraus de acesso à Notre-Dame, eles não mais existem. Ao som dos sinos, frente ao altar de Napoleão e Josefina, coroados imperadores dos franceses em 1804, procuro a fé perdida em algum momento, em vários momentos. Esperançoso no século sem fé, em chamas, faço súplicas, pedidos, rezo sem saber rezar no altar centenário, procuro no ato religioso o que não encontro no mundo, desejo o perdão eterno.
Do outro lado do rio Sena, em frente à calçada, uma luminosidade emite lampejos em várias direções. Observo a luz, um brilho quase ofuscante. Ao chegar mais perto vejo minha imagem refletida no imenso espelho colocado na vitrine, uma novidade que atrai os passantes, eis o motivo de tantos reflexos.
Vários transeuntes param, olham, ajeitam a roupa. Súbito aparece alguém de vestido exótico, é moça, bem moça, ensaia alguns movimentos em frente ao espelho, no início devagar, parece alongar os músculos. As pernas desenham círculos ao redor do corpo sem perder o equilíbrio, exibem movimentos retilíneos compassados, ritmados. Surgem mais espectadores, nascem um palco e uma plateia. Movimentos que aparecem invertidos no grande espelho, seios alinhados, cabelos ao vento, pés descalços no chão. Ela agora dança rápido.
Os espectadores estão fora da imagem que pertence somente à moça que sabe dançar. Ao esticar a ponta do pé acima da cintura em voltas ascendentes, por acaso ou de propósito, alguém eleva o braço e o estalo certeiro atinge a palma da mão. O som do contato anima o tal sujeito. Novamente eleva o braço à espera do próximo estalo, e lá vem ele, Plá! Livre das roupas jogadas em cima da plateia, quase nua, quase sem medo, a moça faz um salto no espaço, agarra a bandeira atirada sobre ela e se envolve vitoriosa no pavilhão. Bravo!
“Lembra Isadora Duncan”, diz a senhora que deve ter lido sobre a “dançarina do futuro”. No Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1916, Isadora é aplaudida em duas apresentações após ser expulsa dos espetáculos programados em Buenos Aires, ao dançar tango enrolada na bandeira nacional argentina, dentro de um cabaré de estudantes.
A dançarina do espelho, ironia, chamava-se Lucienne, e o tal sujeito dos estalos nas mãos, imagina quem poderia ser? Confesso ter levantado o braço de propósito na primeira vez, todas às vezes.