Brasil Editor
Contemporâneo
Arte, literatura
e os artistas
RESUMO DAS AULAS
regpina@gmail.com
Interpretação sobre os textos do livro
Arte, literatura e os artistas
Tradução de Ernani Chaves
Os textos reunidos, à exceção do Unheimliche e Gradiva, publicados separadamente, constituem os escritos de Freud sobre literatura, artes e artistas, entre os anos de 1897 e 1930. Após esse período, o silêncio.
Max Graf
Crítico, vienense e judeu, participante das reuniões das "quartas-feiras” na casa de Freud. Conhecido como o pai do "Pequeno Hans", Max admirava Freud como uma das pessoas mais cultas, cuidadoso ao submeter "A tragédia à investigação psicanalítica". Mais tarde diria que eram inclinações do imaginário romântico de Freud.
A psicanálise investiga o processo de criação, não pretende descobrir a neurose no criador, mas considera que o processo de criação artística segue o modelo de constituição da neurose. Alguns escritores desenvolveram as "patografias": as obras eram examinadas à luz de um estudo médico-psiquiátrico de seus autores, em oposição à proposta de Freud.
Moisés e o monoteísmo de Michelangelo
Freud afirma seu interesse no “conteúdo da obra de arte”, mais por suas “qualidades formais e técnicas”. A tese central de Freud, a dominação da ira de Moisés, expressaria a dominação da própria ira de Michelangelo diante das exigências do papa Júlio II. Freud realizou uma minuciosa análise dos elementos formais e técnicos. Expressaria a relação de Michelangelo com pai? Freud não faz referência a esta interpretação.
Para Freud a criação artística é sinônimo de "metamorfose". A escultura expressaria "O mais elevado trabalho psíquico que um homem é capaz", rebaixar, controlar suas paixões perante uma tarefa extraordinária para a qual Moisés foi escolhido pela divindade.
Em 1910 Freud se ocupara de Leonardo da Vinci, escritor, artista, cientista. O ponto de partida foi a biografia escrita por Merejkovski, anotações autobiográficas, o famoso sonho com o abutre ou milhafre, interpretado como Leonardo sendo alimentado por sua mãe.
Relação entre biógrafo e biografado
O biografado na condição de herói, o "herói" freudiano não é o que luta contra o destino inexorável, mas o que luta contra seu próprio desejo, uma luta fadada ao fracasso.
Dos efeitos das obras de arte a partir
da concepção da "catarse"
A catarse diz respeito ao afeto reprimido, não foi ab-reagido, não foi externalizado, se torna a doença histérica (Berger, 1897). O que se descarrega é o sofrimento pessoal parecido ou simulado por fantasias de autoflagelação (Berger, 1897). Não é a compaixão e o medo que são descarregados, como afirmava Aristóteles, não há efeito de ordem estética (Goethe).
A questão central de Freud se situou em outra dialética, entre o prazer e gozo, prazer e sofrimento. Conflito psíquico, ligação com a cultura e fundamento erótico, libidinoso, eis o interesse de Freud pelos artistas e a literatura.
O papel decisivo da linguagem na cadeia
narrativa do sonho
*Importância das fantasias.
*Papel decisivo da linguagem.
*O sonho sonhado, o sonho contado,
finalmente o sonho interpretado, traduzido,
descoberta do "mistério".
Totem e tabu
*Relação entre o polo narcísico e a alteridade.
*Entre a formação do indivíduo
e as formações da cultura.
Se o princípio da criação artística é o da transgressão e o da metamorfose, então a criação artística é uma "imagem distorcida". As neuroses são tratadas como se fossem privadas, o que na sociedade resultou do trabalho coletivo.
Capítulo 1
Trecho do Manuscrito N,
anexo à carta a Fliess em 31 de maio de 1897
O mecanismo da criação poética
é o mesmo das fantasias histéricas.
Goethe por meio do suicídio do personagem ocorrido em Werther, se protege contra as consequências de sua vivência (O amor impossível por Charlotte). A fantasia o protege. Shakespeare tem razão ao igualar criação poética e delírio.
Personalidades psicopáticas
no palco - 1906
Finalidade da tragédia seria
despertar "medo e compaixão" com o objetivo
de "purificação dos afetos", dizia Aristóteles.
Podemos detalhar um pouco mais este propósito ao acrescentar a abertura das fontes de prazer ou gozo da nossa vida afetiva (cômico, chiste), o trabalho da nossa inteligência, tornando algumas fontes inacessíveis. O processo seria desafogar os afetos, e o gozo resultante traria alívio e excitação sexual conjunta, ao causar o sentimento da mais alta tensão do estado psíquico no indivíduo.
O adulto com seu olhar participativo durante o espetáculo se compara ao brincar da criança em termos de satisfação. O espectador deseja sair de sua vida, ordenar com sua vontade, ser herói. Por meio da identificação com os atores-poetas, ele se coloca nesse lugar. O espectador sabe que haverá dores, sofrimentos sombrios, temores que ameaçam o gozo, mas o sofrimento é do outro, não passa de uma brincadeira sem prejuízo para o espectador. Poderá viver sem medo seus conteúdos reprimidos, purgar nas cenas individuais da vida representada. A poesia lírica permite desafogar sensações intensas, como a dança. A poesia épica possibilita o gozo na vitória das personalidades históricas, o drama desce às profundezas das possibilidades afetivas, o herói vencido apresenta um gozo masoquista.
No drama, os heróis se revoltam contra Deus, o prazer será mostrado pela satisfação masoquista, o gozo pertence aos grandes, não aos miseráveis. Todos os tipos de sofrimento abarcam o drama, o espectador não deve sofrer, deve haver compaixão. Ninguém quer sofrer, o espectador ao se identificar com o doente não encontra prazer, não é um herói no palco, é necessário um trabalho psíquico da doença: a cura.
A tragédia deve ser uma ação conflituosa com esforço e resistência. Dramas religiosos, os de caráter e os sociais se diferenciam pelo lugar da luta, e o que origina o sofrimento continua, o drama se torna psicológico. O declínio não é do herói, haverá renúncia, o declínio é do afeto. O drama psicológico se torna psicopatológico, o conflito ocorre entre uma fonte consciente e outra recalcada do sofrimento que poderá trazer prazer. No neurótico o recalque é visto como fracasso: luta entre recalque e equilíbrio. Aqui o objeto do drama não produz gozo libertador, mas produz resistência.
Hamlet
Primeiro dos dramas modernos, como alguém normal se torna neurótico por causa da tarefa a que se propõe, material recalcado com êxito procura sua legitimidade.
Três características
* Herói que se torna psicopático sob
a influência das ações que pratica.
* Recalque diz respeito ao fundamento do
desenvolvimento pessoal, o Complexo de Édipo,
o recalque abalado em Hamlet.
* O conteúdo recalcado ao tentar chegar
à consciência é conhecido, o herói
é acometido por sentimentos,
os derivados do recalcado podem chegar
à consciência, parte da resistência
é poupada.
O poeta nos transportará para a doença, acompanharemos com ele o desenvolvimento da doença. O recalque deve ser criado para ser representado no palco para além de Hamlet. A instabilidade neurótica do público e a arte do poeta em evitar resistências, propiciando um prazer preliminar podem caracterizar os limites da utilização de caráter anormais.
Capítulo 2
O poeta e o Fantasiar
1908
Os grandes artistas recordam o passado,
testemunham o presente
e antecipam o futuro.
Oscar Wilde
Segundo Freud, em cada um de nós
existe um poeta escondido.
“O último poeta deverá morrer com
o último homem.”
Deveríamos procurar os primeiros indícios da atividade poética nas crianças. A criança ao brincar cria seu próprio espaço, transpõe coisas do seu mundo para outro registro, registro onde investe seus afetos. O oposto da brincadeira é a realidade. A criança diferencia seu mundo de brincadeira da realidade. O poeta faz o mesmo, cria um ambiente de fantasias, investe seus afetos, distingue seu mundo da realidade.
A criança cresce e abandona suas brincadeiras, o adulto necessita lidar com a seriedade e exigências da vida, se desfaz das opressões e alcança o prazer por meio do humor. De acordo com Freud, um dom raro no indivíduo, fundamental para o equilíbrio psíquico. O adulto deixa a brincadeira de lado, renuncia ao prazer obtido. É difícil renunciar a um prazer outrora experimentado, o indivíduo buscará uma formação substitutiva. O brincar se transforma na fantasia, "sonhos diurnos", que no adulto são escondidos por vergonha, sem perceber que essas criações, às vezes, serão compartilhadas por outros. Fantasia é um recurso saudável na vida psíquica, desde que o limite entre fantasia e realidade esteja estabelecido.
Desejos insatisfeitos são forças impulsionadoras das fantasias. A fantasia é uma realização de desejo, uma correção da realidade insatisfatória. As significativas relações da fantasia com o tempo abrangem três estágios, são momentos temporais da nossa imaginação. Passado, presente e futuro se alinham no caminho percorrido no desejo.
Relação das fantasias com os sonhos
Nossos sonhos noturnos representam fantasias, desejos escondidos, recalcados e enviados para o inconsciente. Os sonhos noturnos, assim como os "sonhos diurnos" e as fantasias, simulam realizações de desejos.
As criações dos poetas
Sua majestade o Eu, um herói sempre vencedor das dificuldades. Herói dos romances e dos sonhos diurnos, o Eu em parceria com "maus" e "bons personagens". Citamos os romances tardios, Zola, o herói como espectador. Uma forte vivência atual pode despertar no poeta a lembrança de uma vivência antiga, infantil. O desejo se realizará na criação literária, o encontro de acontecimentos recentes com antigas lembranças. O poeta suaviza o caráter do sonho diurno egoista, nos oferece um ganho de prazer, nos coloca na situação de gozarmos com nossas fantasias sem censura ou vergonha.
Capítulo 3
Uma lembrança da infância
de Leonardo da Vinci
I) Leonardo da Vinci (1452-1519), um gênio. Exerceu influência na pintura da época, como investigador da natureza, o reconhecimento só surgiria mais tarde. Múltiplas habilidades em uma única pessoa, evento comum na Renascença. Rosto belo, força física incomum, mestre da palavra, adorava a beleza. Tal descrição corresponde ao primeiro e mais longo período do mestre.
Ludovico, o Mouro, protetor do artista, entra em declínio e o gênio é obrigado a se retirar de Milão, do círculo de influência. Houve uma crescente mudança em relação ao trabalho de Leonardo: migrou da arte à ciência. Dissecou cadáveres de cavalos e pessoas, construiu aparelhos para voar, estudou plantas e a relação com venenos, aproximou-se dos desprezados alquimistas. Raramente pintava, rascunhava esboços incompletos. A relação com a arte se tornou um mistério. Tentativas não faltaram entre amigos, queriam apagar a oscilação de caráter.
A desesperada luta entre o artista e o objeto, a indiferença diante do destino, a luta e a indiferença surgem nos artistas, mas Leonardo foi ao extremo. Pintou a Santa Ceia em Milão. Três longos anos. Morador no mosteiro, Matteo Bandello nos conta que Leonardo bem cedo subia no andaime, permanecia até o crepúsculo sem interrupções para refeições. Em outros momentos, dava algumas pinceladas e interrompia bruscamente a pintura. Mona Lisa demorou quatro anos, sem receber o último retoque . O quadro não foi enviado para quem o encomendou, permaneceu com Leonardo. Mais tarde, comprado por Francisco I. Hoje um dos maiores tesouros do Louvre.
Leonardo condenava guerras e derramamento de sangue, afirmava que o homem seria o mais rude das bestas selvagens, no entanto acompanhava criminosos condenados na hora da execução. O intuito era estudar a mímica distorcida dos olhos e desenhá-los no caderno. Parecia indiferente ao bem e ao mal.
Na vida psíquica, foi um exemplo de fria negação da sexualidade, o que não se espera de um admirador da beleza feminina. Seus escritos são considerados castos, abstinentes. Possuímos apenas alguns desenhos anatômicos sobre a genitália interna das mulheres, o útero, e mais algumas reproduções. Não se conhece relação íntima de Leonardo com uma mulher. Foi denunciado por práticas homossexuais proibidas e absolvido.
Mas o desejo insaciável de conhecer tudo
a sua volta e fundamentar com fria reflexão
o mais profundo mistério
de tudo que é perfeito
condenou a obra de Leonardo a permanecer
sempre incompleta.
Edmund Solmi, biógrafo.
Edmund tentou explicar o enigma na coexistência
da dupla natureza
de Leonardo como artista e pesquisador.
Um grande amor surge de um grande conhecimento do objeto amado e se tu o conheces pouco, então, tu só poderás amá-lo um pouco ou nada, imaginava Leonardo. Afetos docilizados, dominados pela pulsão de pesquisa, transformam a paixão no impulso de conhecer, denominado como Fausto italiano. Não era desprovido de paixões. Leonardo após ter concluído a obra permitia a erupção dos afetos contidos. Demonstrava preocupação com as qualidades e leis da luz, cores, sombras, perspectivas. Assegurava o domínio na imitação da natureza.
O artista havia colocado o pesquisador a serviço, um serviçal, como um ajudante, mas o serviçal dominou o artista. Consideramos como provável a pulsão dominante oriunda na infância. A dominação se estabelece por meio de impressões infantis, recorrem às forças pulsionais originárias para fortalecê-las.
Uma das partes entre as forças pulsionais sexuais se dirige à atividade profissional: sublimação. No entanto, se a pesquisa sexual infantil, fundamental no processo de desenvolvimento psíquico do indivíduo for recalcada, a pulsão de pesquisa (o desejo de saber) poderá seguir três caminhos:
1) Inibição neurótica (adoecimento),
2) Desenvolvimento intelectual resistente ao recalque sexual. Pesquisar torna-se atividade sexual, frequentemente conclui que o pensamento, o esclarecimento ocupam o lugar da satisfação sexual.
3) Outro caminho, raro, a libido se afasta do recalque, se sublima, como desejo de saber, pulsão de pesquisa. Substituto da atividade sexual, aqui a pulsão age livremente a serviço do interesse intelectual.
Se considerarmos o encontro entre a pulsão de pesquisa em Leonardo com a atrofia da vida sexual, poderemos considerá-lo modelo do terceiro caminho (3). A atividade infantil do desejo de saber a serviço dos interesses sexuais, para sublimar a maior parte da libido em direção ao ato de pesquisar, seria o cerne e o segredo de sua essência. Necessitamos de um olhar no desenvolvimento psíquico de seus primeiros anos na infância, o que nos parece tolo: as informações são incertas e poucas.
Em seus manuscritos, uma única vez
Leonardo se referiu
à primeira recordação da infância.
II) No berço, um abutre abria a boca de Leonardo e com a cauda batia várias vezes nos lábios. Esta lembrança considerada por especialistas como fantasia teria sido formada e transportada posteriormente para a infância. Uma lembrança da época de lactante. As lembranças da infância não se fixam em vivências e se repetem. Reaparecem em épocas posteriores, modificadas, falsificadas, a serviço de outras tendências, de tal modo que permitem se separar de fantasias em geral.
Apesar das distorções e equívocos, a realidade do passado está representada nas sagas, nas tradições. O mesmo vale para lembranças de infância ou fantasias individuais, restos escondidos de lembranças. O olhar do psicanalista traduz a fantasia do abutre como erótica. Cauda (coda) significa o membro masculino. Fantasia ou sonho, Leonardo conduziu a figura do abutre para a época da amamentação. A fantasia oculta uma reminiscência do sugar (amamentação) ou ser sugado (homossexualidade). Na pintura, Leonardo expressa o seio da mãe na cena Mãe de Deus com o filho. A mãe é o abutre. Nas imagens sagradas dos antigos egípcios, a mãe é representada na figura do abutre. Lembremos a deusa Mut, divindade materna com cabeça de abutre. O abutre, símbolo da maternidade, desacreditava a existência de abutre macho. A mãe-abutre portava falo.
Leonardo poderia ter conhecimento da "fábula" por intermédio dos padres. A fantasia infantil teria surgido do real da fantasia: a mãe-abutre alimenta o filho. Ilegítimo, o filho Leonardo seria a criança-abutre. Alguns autores reforçam a tese do fato de Leonardo ter passado os primeiros anos só com a mãe, uma influência decisiva na formação de seu interior. A mãe que cuida e alimenta, projeta o olhar em seu filho. Despertou em Leonardo o desejo do saber e do conhecimento, influências decorrentes da pesquisa sexual infantil.
III) Fantasia infantil, em Leonardo da Vinci o elemento do abutre representa o conteúdo real da lembrança, o significado para sua vida posterior. Relaciona o pássaro materno com o símbolo da masculinidade, o falo. Mut, a deusa, foi constituída em suas representações de maneira fálica: portava entre os seios o membro masculino em estado de ereção. Tal como na fantasia do abutre em Leonardo, a unificação do maternal com o masculino.
A mitologia mostra a formação andrógina, a unificação das características sexuais masculinas e femininas em outras divindades. O falo introduzido no corpo feminino provavelmente significa a força originária criadora da natureza, as formas divinas hermafroditas expressas na unificação do masculino e do feminino, representação digna da perfeição divina.
Maternidade e signos
da força masculina
A pesquisa sexual infantil, o enigma da vida sexual é o momento em que surge o interesse pelo próprio órgão sexual. O menino acredita que todos, incluindo as mulheres, possuem um membro como ele. A percepção mostra a diferença. Surgem fantasias relacionadas à falta do membro nas meninas, culminando com a fantasia da castração (O medo da castração é a saída do Complexo de Édipo).
Tempos primitivos
Para o entendimento da vida psíquica infantil, necessitamos recorrer aos tempos primitivos. Os genitais eram o orgulho e a esperança dos indivíduos, gozavam de veneração divina transmitida nas gerações. No desenvolvimento da cultura, o caráter divino e sagrado foi extraído da sexualidade: os genitais tornaram-se objetos de vergonha. Devemos encontrar na humanidade o que a pesquisa psicanalítica do psiquismo infantil nos mostrou acerca da valorização infantil dos genitais. Símbolo da maternidade, as representações acrescentam os seios ao membro masculino, tal como a criança imaginava o corpo materno.
A fantasia do abutre não representaria
uma relação causal entre a relação
do Leonardo criança com a mãe
e as possíveis manifestações posteriores
de homossexualidade ideal?
Na investigação psicanalítica de pacientes homossexuais, não foi possível tal afirmação. A psicanálise oferece o meio de preencher a lacuna aberta, submeter à prova a afirmação da homossexualidade: a necessidade de satisfação com os homens, o que faltaria no contato com as mulheres. Na infância esquecida desses indivíduos, observou-se a ligação erótica intensa com a mãe. Mulheres de caráter enérgico, uma forte influência feminina. A figura ausente do pai, mesmo estando presente.
O amor e a mãe
A criança se identifica com a mãe, sucumbe ao recalque e escolhe os objetos de amor. Os objetos escolhidos serão substitutos da própria pessoa quando criança, exibidos via narcisismo. A imagem da mãe permanece fixada no inconsciente. Este processo por nós reconhecido é apenas um, entre muitas explicações: processos de inibição psíquico-sociais. Conhecemos muito pouco do comportamento sexual de Leonardo da Vinci. Ao abandonar a atividade sexual, procurou um anseio superior: colocou sua libido na arte.
Biógrafos
Leonardo anotava os acontecimentos mais frequentes no diário. Seus biógrafos analisaram o conteúdo e encontraram manuscritos de cunho afetivo. Poderíamos por meio da fantasia/sonho com o abutre, fazer a seguinte interpretação: Da relação erótica com a mãe, tornei-me homossexual.
IV) Estamos presos à fantasia do abutre de Leonardo da Vinci. Sigmund Freud enfatiza a intensidade da relação erótica entre mãe e filho. Outra interpretação da lembrança dessa fantasia; a mãe deu incontáveis beijos apaixonados na boca do filho. A fantasia se constitui a partir da lembrança da amamentação e dos beijos da mãe.
Leonardo expressou nas obras as emoções psíquicas mais secretas, escondidas dele mesmo. Quando se observa os quadros, vem à lembrança um sorriso estranho, encantador e misterioso que enfeitiça os lábios de suas figuras femininas. Diante da bela e estranha face da florentina Mona Lisa del Giocondo, o observador se comove. Quantas interpretações esse sorriso suscitou? Ao que parece, nenhuma satisfatória. Considerada a mais perfeita representação dos antagonismos que dominam a vida amorosa da mulher: "a reserva e a sedução, a devotada ternura, a imprudente, a suplicante, a esgotada sensualidade, de algum modo estranha ao homem".
O artista pintou o quadro durante quatro anos, talvez entre 1503 e 1507, na segunda temporada em Florença, com mais de 50 anos de idade. Não ficou satisfeito com a obra, decidiu não envia-la a quem encomendou. Levou a tela para a França, onde seu protetor Francisco I adquiriu-a para o Louvre. Um dos biógrafos de Leonardo, W. Pater, afirma: "De todo modo, esse quadro é um retrato. Nós podemos investigar como nele se mistura da infância até o tecido dos seus sonhos, de tal modo que gostaríamos de acreditar, os testemunhos expressos não falariam contra, que ele seria seu, finalmente encontrado e incorporado, ideal de mulher..."
O sorriso da mãe o impediu
de desejar os lábios de outra mulher,
sorriso interpretado em suas obras.
Representando diferentes imagens que nos fazem pensar em dois objetos sexuais, a partir da análise de sua fantasia com o abutre. Se os rostos de crianças forem cópias dele, então as mulheres sorridentes seriam a repetição de Catarina, sua mãe, talvez possuidora do sorriso misterioso perdido e reencontrado na dama florentina. Apenas Leonardo poderia ter pintado "Sant'Ana no grupo de três", com Maria e Jesus criança, transformar em arte a fantasia do abutre.
Ao morar com o pai, Leonardo encontrou a boa madrasta Dona Albiera e a avó Mona Lúcia, mãe de seu pai. É a representação da infância protegida na mãe e na avó. A mãe colocou o pequenino no lugar do marido, beijos amorosos e impetuosos. Roubou do filho parte da masculidade por meio de amadurecimento precoce do erotismo. O amor da mãe realiza todos os desejos psíquicos, necessidades corporais sem censura, há muito recalcadas.
Assinatura de Leonardo da Vinci.
Uma lembrança da infância
de Leonardo da Vinci
V) Um dos diários de Leonardo registra duas vezes o falecimento do pai "às 7 horas". Para Freud, esse fato aponta processos psíquicos ocultos, assim como as anotações referentes às despesas realizadas por Leonardo no enterro de Catarina, sua mãe. Os afetos escondidos se expressam de forma distorcida. Tal repetição é denominada preservação. O deslocamento da preservação nos mostra algo escondido, reprimido.
Casado quatro vezes, o pai de Leonardo conseguiu o primeiro filho legítimo quando o artista, ilegítimo, já havia completado 24 anos. A figura do pai foi importante para o desenvolvimento psicossexual de Leonardo. Leonardo morou com a mãe Catarina até os cinco anos de idade, bem distante da casa do pai. Reviveu o complexo de Édipo com o pai, uma rivalidade normal. O surgimento da homossexualidade se deu na puberdade. A identificação com o pai roubou o significado na vida sexual do artista e se deslocou para atividades não eróticas.
Leonardo se considera “o pai de sua obra”. As obras pictóricas sofreram efeitos da identificação com o pai. Leonardo as criou e as deixou, assim como no relacionamento com o pai. As primeiras impressões obtidas na infância e o recalcado que permanece no inconsciente não são corrigíveis posteriormente. Se a imitação do pai o prejudicou como artista, sua revolta infantil o conduziu ao trabalho de pesquisador. Primeiro investigador moderno da natureza, Leonardo se baseou na observação, no próprio julgamento para averiguar os segredos da natureza. Desprezou a autoridade tão necessária aos meninos; tal como renunciara ao pai.
A psicanálise nos mostra o elo entre o complexo paterno e a crença em Deus, substituto da autoridade do pai, protetor no desamparo da criança. Leonardo emprestou às figuras religiosas belas emoções: transformou-as em figuras humanas. Seus esboços mostram admiração ao Criador, mas não indicam desejo de manter uma relação pessoal com o poder divino.
Acoplou o desejo da pesquisa
à fantasia com o abutre,
destacou o voo dos pássaros,
algo que se abateu sobre ele.
O desejo de voar do ser humano é a capa de outro desejo. Nos sonhos, a nostalgia de ser capaz de atividade sexual. Desejo da mais tenra infância. A criança na pesquisa sexual imagina o adulto como detentor de algo importante nessa área, sonha, deseja desvendar o mistério. Sua raiz se encontra no erotismo infantil. O recalque não atingiu a pesquisa sexual infantil de Leonardo. Com a sexualidade alienada, foi dirigido à arte. Permaneceu infantil em muitos aspectos: “todo grande homem conserva algo de infantil”.
É provável que a pulsão lúdica
tenha diminuído na maturidade.
Leonardo gozou de felicidade
erótica na infância,
felicidade que nunca mais
seria alcançada
em outros relacionamentos.
Leonardo da Vinci
Estátua na Galleria degi Uffizi.
VI) Biógrafos tendem a se fixar nos seus heróis, os idealizam, apagam restos da fraqueza humana, imperfeição, oferecem uma imagem ideal, sacrificam a verdade em troca de ilusão.
Por amor à verdade e ao conhecimento, Leonardo buscou intuir as condições de seu desenvolvimento psíquico e intelectual. Saúde e doença não estão separadas. Os sintomas neuróticos são formações substitutivas de processos recalcados, representam nosso desenvolvimento da infância até a idade adulta. Leonardo viveu na abstinência assexual até a puberdade, quando a pulsão sexual sublimada se torna compulsão pela ciência e evita o recalque. Surge o Leonardo artista, pintor e escultor, fortalecido no despertar precoce da pulsão de ver na infância.
Na juventude trabalha sem inibições. Época de masculina força criativa e produtividade artística em Milão, decorrente do pai como modelo. O desdobramento da puberdade levou Leonardo a ser artista e os condicionamentos da tenra infância a ser pesquisador. No auge da vida, após os 50 anos, camadas mais profundas de seus conteúdos psíquicos tornam-se ativas, sua arte atrofiada encontra a mulher que lhe desperta o sorriso feliz e sensual da mãe, retoma a atividade artística ao pintar mulheres sorrindo.
Esta é uma exposição das etapas do
desenvolvimento de Leonardo
e o esclarecimento de sua oscilação
entre arte e ciência.
Leonardo apresentou inclinação especial ao recalcamento das pulsões e extraordinária capacidade de sublimar as pulsões primitivas. Se não esclarecemos totalmente a atividade artística de Leonardo, compreendemos as expressões e limitações existentes. Apenas um homem com as vivências infantis de Leonardo poderia pintar a Mona Lisa e Sant'Ana, obras que fornecem a chave de seu desempenho e seu destino, ambas escondidos na fantasia infantil do abutre.
Capítulo 4
Duas cenas de Shakespeare
I) O Mercador de Veneza. A escolha do pretendente entre os três cofrinhos: o de ouro, o de prata e o de cobre. O correto é aquele que contém o retrato de Pórcia.
Dois candidatos não tiveram êxito. Bassânio escolheu o de cobre, ganhou a noiva que por ele torcia. Ao enaltecer o cobre perante o ouro e a prata, justificou sua escolha. Shakespeare tomou o oráculo dos cofrinhos da Gesta Romanorum, coletânea de contos medievais de origem desconhecida. Há várias suposições em relação ao significado da escolha entre os três cofrinhos. Na epopeia da Estônia, assim como na Gesta Romanorum, trata-se da escolha da mocinha entre três pretendentes.
No Mercador de Veneza um homem escolhe entre três cofrinhos. Os cofrinhos são mulheres, simbolizam o que há de essencial, e são representados também por cestos, latas, caixas. A escolha de um homem entre três mulheres. Outra peça de Shakespeare apresenta semelhanças misteriosas com a escolha dos cofrinhos no Mercador. O velho rei Lear decide dividir seu reino entre as três filhas de acordo com o amor que lhe devotam.
Cordélia se mantém em silêncio, é repudiada pelo pai. Uma cena de escolha entre três mulheres, a mais jovem é a perfeita. A terceira, assim como o cofrinho. Mitos nos veem à cabeça. Fiquemos com Cordélia, Afrodite, Cinderela e Psique. Das três mulheres, a terceira é a mais perfeita. Quem são as três mulheres e por que a escolha deve recair sobre a terceira? Percebemos que a terceira é a perfeita, além da beleza possui outras qualidades. Cordélia se torna invisível como o cobre: "ama e silencia". Cinderela se esconde, ninguém a encontra. Associamos esconder-se com calar-se.
No ato da escolha, Bassânio nos diz: ouro e prata "falam", cobre permanece calado, "ama e silencia", como Cordélia. A psicanálise nos diz: silenciar é, no sonho, uma representação usual da morte. Poderíamos fornecer justificativas a partir dos contos de fadas, nos quais o silêncio é entendido como representação da morte. A terceira das irmãs seria uma morta, a deusa da morte. Se a terceira das irmãs é a deusa da morte, então conhecemos as irmãs. São filhas do destino: as Moiras ou Parcas e a terceira seria Átropos, a inexorável.
As Moiras, na mitologia grega, eram as três irmãs que determinavam o destino, tanto dos deuses quanto dos seres humanos. Três mulheres lúgubres fabricavam, teciam e cortavam o fio da vida dos indivíduos. Na mitologia romana, as Parcas eram filhas da noite. Controlavam o destino dos mortais, decidiam questões como a vida e a morte. Átropos era uma das três Moiras da mitologia grega, que regiam os destinos, sendo sua contraparte romana conhecida como Morta. Era a mais velha das Moiras, "inflexível" responsável por cortar o fio da vida.
II) A mitologia grega arcaica conhece apenas uma Moira, como personificação do destino do qual não se escapa. O desenvolvimento para as três irmãs surgiu em apoio à outras figuras divinas, das quais as Moiras estão próximas, as três Graças e as Horas.
As Horas são as deusas
das estações,
da ordem da natureza,
da justiça e da paz.
Representantes divinas das estações do ano. Para os povos antigos eram três estações. O outono surgiu posteriormente. As Horas mantiveram relação com o tempo; se tornam deusas do destino, vigiam impiedosamente a vida humana. A terceira das irmãs deve ser a deusa da morte. No Mercador, a mais bela e inteligente mulher, no rei Lear a pudica filha fiel.
A tradição nos aponta para a escolha livre e para a escolha que recai sobre a morte. Existem motivos na vida psíquica: a substituição por meio do oposto ocasiona a formação reativa. O homem utiliza sua capacidade de fantasiar para realizar desejos não satisfeitos na realidade, criando o mito em que a deusa da morte é substituída pela deusa do amor. A terceira das irmãs não é mais a morte, mas sim a mais bela, a mais desejada, a mais amada entre as mulheres. A deusa do amor, agora, ocupa o lugar da deusa da morte.
O dever invertido
caracteriza a escolha
Escolher está no lugar da necessidade: o homem supera a morte, escolhe a mais valorizada, a mais bela. A escolha não é totalmente livre: a terceira deve ser a escolhida para evitar as desgraças, como em Rei Lear. A mais bela mantém traços do sinistro, esta no lugar da deusa da morte, algo que se mantém oculto. Poderíamos dizer que as três constituem a ligação do homem com as mulheres, as formas pelas quais a imagem da mãe se modifica no decorrer da vida: a que procria (a mãe), a companheira (a amada) e por fim a Mãe-Terra que novamente o acolhe.
Capítulo 5
Por que Freud considerava a escultura enigmática? Legislador dos judeus, a obra representa Moisés de posse das tábuas com os mandamentos divinos. Há muitas interpretações contraditórias. O essencial para entendimento de Moisés está oculto.
I) Segundo Freud, Thode (historiador alemão) caracterizou melhor a expressão do rosto de Moisés: "mistura de ira, dor e desprezo", "a ira nos ameaçadores olhos franzidos, a dor, no modo de olhar, o desdém no lábio inferior impelido para frente e o canto da boca puxado para baixo". Outros se insurgiram contra a obra, denunciaram a brutalidade de sua forma e a semelhança animalesca da cabeça. Michelangelo desejou criar nesse Moisés "uma imagem atemporal dos afetos e dos caracteres" ou representou o herói em um determinado momento de sua vida?
Vários historiadores encontram na escultura o momento da descida do Monte Sinai. Moisés recebe de Deus as tábuas da lei, observa o bezerro de ouro e a dança em torno dele. Moisés arremessará as tábuas no chão e descarregará sua ira sobre os apóstatas?
As interpretações diferem. Justi e Knapp são de uma raridade impressionante. Destacam a preparação para a ação e contestam a representação de inicial inibição, na sequência da excitação violenta. Sabemos pelas interpretações que a estátua de Moisés representa um momento especial, significativo.
Thode muda nosso pensamento
Ele constata "a atitude firmemente serena da mão direita sobre as tábuas dispostas uma sobre a outra".
Thode e Justi se contrapõem à ideia de que Michelangelo quis fixar um momento histórico determinado. O Moisés que observamos não pode ser compreendido como representação do homem irado descendo do Sinai que ao ver seu povo dissidente, joga fora as tábuas da lei que se espatifam.
Dessa forma temos que reconhecer uma imagem de caráter. Um apaixonado condutor da humanidade, consciente da tarefa que lhe foi atribuída por Deus, vai de encontro à incompreensível resistência dos homens. O segredo principal do efeito do Moisés consiste na oposição artística entre a chama interior e a atitude externamente tranquila, conforme nos aponta Knackfuss.
Não me oponho ao esclarecimento de Thode, afirma Freud, mas sinto que falta algo. Talvez a necessidade de expressar uma relação íntima entre o estado da alma do herói e a oposição entre a "tranquilidade aparente" e o "movimento interno", expresso em sua atitude.
II) Antes da Psicanálise, Freud soube de um conhecedor de arte, o russo Ivan Lermolieff, em artigos publicados entre 1874 e 1876. Lermolieff construiu novas individualidades artísticas, abstraiu os grandes traços de um quadro, destacou o significado característico de pequenos aspectos subestimados. Lermolieff era o pseudônimo do médico italiano Morelli.
Em dois lugares da figura de Moisés encontram-se detalhes que não tinham chamado atenção. A mão direita e a localização das duas tábuas da lei. Não se pode dizer que a mão direita brinca com a barba ou ela se afunda, ao contrário. Um dos dedos, o indicador, descansa sobre uma parte da barba. Pressionar a própria barba com o dedo é um gesto especial e dificilmente compreensível.
Talvez esses traços irrisórios nada signifiquem, na opinião de Freud. Seriam indiferentes ao artista? Esses detalhes teriam um significado? Após análise da posição das mãos, pés, sua barba; é tempo de refletir. O movimento das tábuas também é analisado.
Freud solicitou a um desenhista que fizesse três desenhos para esclarecer a posição de Moisés. O terceiro reproduz a estátua, tal como vemos, os outros dois representam as etapas preparatórias postuladas por Freud.
A primeira, o momento da tranquilidade, a segunda, a da tensão mais elevada, a preparação para o salto, o afastamento da mão em relação às tábuas e o início do deslizamento destas.
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Nota: Conhecedor de obras de arte em Carrara, Mauro Pisani sugeriu em 2004 que as modificações realizadas na escultura de Moisés seriam para camuflar um acidente. Ao quebrar o antebraço esquerdo esculpido na posição vertical, Michelangelo precisou modificar alguns movimentos.
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III) Freud propõe abandonar a interpretação de que Moisés saltaria sobre seu povo e destruiria as tábuas. Não condiz com a caracterização da estátua como parte do sepulcro de Júlio II. Moisés superou a ira, dominou a paixão, salvou as tábuas. Michelangelo o representou como guardião do sepulcro. Este não é o Moisés da Bíblia, surgiu da sensibilidade do artista, falseou o caráter do homem divino. O homem Moisés era irritadiço, dominado por paixões. Michelangelo retrabalhou o tema da destruição das tábuas, acrescentou algo além-do-humano à figura de Moisés. Tornou-se expressão do mais elevado trabalho psíquico de que um homem é capaz, controlou a paixão, cumpriu o caminho predestinado. Os motivos para essa modificação devem ser procurados no caráter do Papa Julio II e nas relações com o artista.
IV) Em 1863, o inglês W. Watkiss Lloyd escreveu uma pequena brochura dedicada a Moisés. Freud ao ler o material, encontrou concordância com sua interpretação. Um ponto decisivo os separa: Lloyd interpretou os indícios da barba, mas não os das tábuas, aceitou sua posição como original. Freud considerou a hipótese de a interpretação ser indiferente ao trabalho do artista que a esculpiu por acaso, sem esconder mistérios procurados por ele e por historiadores.
Escultura Nicholas von Verdun
Complemento ao trabalho sobre
O Moisés, de Michelangelo (1927)
Muitos anos após o surgimento
do trabalho de Freud sobre
O Moisés de Michelangelo, em 1914,
sem menção ao nome do autor.
Freud recebeu um artigo escrito
por H. P. Mitchell sobre
duas estátuas de bronze do século XII,
assinadas por Nicholas von Verdun.
Uma das estatuetas é um Moisés
de 23 cm de altura,
caracterizado pelas tábuas mantidas
pela mão esquerda junto ao peito,
transportando-as para o outro lado.
Freud acredita que esta descoberta
fortalece a probabilidade
da interpretação por ele feita, em 1914.
Capítulo 6
A transitoriedade
1916
Passeava em companhia de um jovem conhecido poeta e um "amigo taciturno". Freud conversava e caminhava. O poeta admirava a natureza e se mostrava perturbado com a beleza que irá perecer um dia. Pensava que tudo perderá seu valor em função da transitoriedade.
Dois movimentos psíquicos podem surgir desse pensamento, segundo Freud. O dolorido fastio do poeta perante o mundo ou a sua revolta contra a realidade. De caráter pessimista, o poeta associava o aspecto da transitoriedade do belo à desvalorização. O caráter transitório do belo não deve interferir em nossa alegria; o que for destruído no inverno, retornará no próximo.
A beleza do corpo e do rosto se desvanece em nossa vida; esta efeméride traz nova beleza, medita Freud. O cientista não compreende como a perfeição da obra de arte e da capacidade intelectual poderiam perder o valor por sua limitação temporal. Quadros e estátuas podem desaparecer, ou nossos poetas não serem compreendidos. O valor, a beleza e a perfeição persistiriam, independentemente da duração do tempo.
Transitoriedade do belo
Freud observa que tanto o poeta como "seu amigo", talvez estivessem sob influência de um momento afetivo forte. A ideia da transitoriedade do belo fornece uma prova do luto. A alma recua frente ao que é doloroso. O luto é perda de algo que amamos. Significa um enigma, remete à lugares obscuros do nosso ser.
Freud afirma que o indivíduo possui capacidade para o amor, denominada libido. Ela inicialmente se volta para o próprio Eu. Mais tarde a libido se separa do Eu, volta-se para objetos que serão incorporados ao nosso Eu.
Se os objetos são perdidos, a libido se libera novamente, poderá se ligar a outros objetos ou voltar-se para o Eu. A libido tem dificuldades em se desligar do objeto perdido, ainda que tenha encontrado um substituto.
A conversa
Um ano após essa conversa com o poeta, teve início a Primeira Grande Guerra; destruiu a beleza das paisagens, obras de arte, orgulho, cultura, esperança. Desacorrentou a crueldade reprimida que se pensava permanentemente domada na civilização. Para alguns ficou apenas o luto, mas se renunciarmos ao que foi perdido, o luto se enfraquecerá, a libido livre substituirá os objetos perdidos por novos objetos. O ser humano reconstruirá o que a guerra destruiu, talvez com fundamentos mais sólidos, mais duráveis.
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Nota: O famoso poeta jovem é Rainer Maria Rilke, o "amigo taciturno", a companheira de Rilke, Lou Andreas-Salomé. O "amigo taciturno" turno psicanalista, encantou Nietzsche e Paul Rée. Esse passeio ocorreu em agosto de 1913, Freud escreveu o artigo em 1915.
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Capítulo 7
Alguns tipos de caráter a partir
do trabalho psicanalítico
1916
É proposto no trabalho psicanalítico descobrir o significado dos sintomas. A resistência do paciente ameaçava a investigação. Freud aborda a descrição dos traços de caráter.
I) As Exceções
A psicanálise tem como objetivo conduzir o paciente a renúncia do ganho de prazer imediato, em troca de um melhor prazer.
Deverá progredir do princípio do prazer para o princípio da realidade. É necessário exigir do paciente que renuncie ao prazer imediato e conquiste uma melhoria de vida. O sintoma oferece prazer, apesar do sofrimento indesejável.
Ao se considerar exceção, o paciente reclama privilégios em relação aos outros. Os privilégios surgiriam dos sofrimentos ocorridos na primeira infância. Freud cita como exemplo o monólogo introdutório de Ricardo III, de Shakespeare.
"... foi com deformidades, inacabado e antes do tempo que me puseram neste mundo que respira..."
"... estou decidido a agir como um canalha e detestar os prazeres fáceis dos dias de hoje."
Esse monólogo, segundo Freud, nos leva a completar o pensamento exposto. A aparência de frivolidade desaparece e amargura do personagem se evidencia. Para Ricardo III a vida lhe deve desculpas: ele é uma exceção e poderá praticar a injustiça. Ricardo III é a representação do nosso comportamento: guardamos o rancor oriundo dos danos infantis. É o adoecimento do nosso narcisismo. Do que o mundo nos tirou, exigimos desculpas. Dessa forma o poeta nos desvia do pensamento crítico, estimula a atividade intelectual, nos leva à identificação com o herói.
II) Os que fracassam pelo êxito
O indivíduo se torna neurótico devido à privação da satisfação de seus desejos sexuais. Conflito entre os desejos e as pulsões de autoconservação: pulsões do Eu. A privação da satisfação real é a primeira condição para a neurose. Surpreendente, continua Freud, é quando o desejo se realiza e o indivíduo adoece. Tal fato aponta para uma relação entre o êxito e o adoecimento.
Privação externa e interna. Se o objeto no qual a libido busca satisfação é eliminado, ocorre uma privação externa. Para se configurar um processo patogênico, necessário se faz a privação interna que surgirá do conflito entre o Eu e a libido. A libido buscará substitutivos por caminhos relacionados ao inconsciente recalcado. Quando o indivíduo adoece por ter obtido êxito, apenas a privação interna se realizou; a neurose surgirá após a privação externa se colocar no lugar da realização do desejo.
Transformação externa real faz irromper o conflito. Os poderes da consciência impedem o indivíduo de atingir a satisfação almejada: surgem forças punitivas. Não sabemos sua procedência. Freud afirma que utilizará o personagem de Shakespeare, Lady Macbeth, para tentar explicar o processo.
Lady Macbeth entra em crise após ter realizado seu desejo. Lutou obstinadamente por seu marido, sacrificou sua feminilidade, se tornou rainha. Após o êxito, apresentou sinais de tédio e decepção.
(Ato III, cena 2)
"Nada se ganha, e tudo se perde,
quando nosso desejo fica satisfeito
sem contentamento..."
Surge como sonâmbula, ouve bater à porta, lava suas mãos manchadas de sangue e com cheiro de morte. Lady Macbeth parecia ter se livrado do remorso, possuia caráter determinado. O que teria ocorrido? Pergunta Freud. A transformação da coragem para o crime, para o rancor, o adoecimento estaria relacionado à desfeminização de Lady Macbeth, para conclamar os espíritos dos mortos. Seria uma reação à impossibilidade de ter filhos, sua impotência diante da natureza. O tempo em Shakespeare é acelerado e nossas construções sobre Lady Macbeth não se sustentam, avalia Freud.
Em estudos sobre Shakespeare, Ludwig Jekels acredita que o autor divide o caráter em duas personagens. Enquanto não forem reunidas em uma única personagem, surgiriam imperfeições. Dessa forma se realiza em Lady Macbeth o que seu marido temia na angústia de consciência; ela se torna rancorosa, ele consolador. Teria sua consciência de culpa despertada ao ponto de impedir o gozo?
É Freud que afirma. O trabalho psicanalítico nos ensina: as forças conscientes que se deixam adoecer devido ao êxito estão intimamente relacionadas ao Complexo de Edipo, às relações com o pai e a mãe, com nossa consciência de culpa.
III) O criminoso por consciência de culpa
Vários pacientes sob pressão da consciência de culpa (de origem desconhecida) sentem um alívio psíquico após cometerem o ato proibido. A consciência de culpa é anterior ao ato; o ato surge da consciência de culpa. Segundo Freud, esse sentimento de culpa provém do Complexo de Édipo; seria uma reação ao desejo de matar o pai e permanecer com a mãe. A humanidade adquiriu sua consciência por meio do Complexo de Édipo. O parricídio e o incesto com a mãe são os crimes mais abominados, inclusive nas sociedades primitivas.
Freud em seu texto “Além do Princípio do Prazer”, publicado em 1920, abordara a questão da pulsão de vida e pulsão de morte. O ser humano é um ser desejante, incompleto. Busca satisfação na fantasia. Quando a realidade torna possível a realização do desejo, esta realidade se torna insuportável. Há um limite além do prazer ligado à pulsão de morte. Surgem sentimentos de culpa, a impossibilidade em relação ao gozo. O indivíduo por não suportar o êxito e o sentimento de culpa inconsciente destrói o que obteve, o que tanto desejava.
Desejo realizado: o êxito leva ao vazio, à volta ao estado inorgânico característico da pulsão de morte.
Capítulo 8
Uma lembrança de infância
em Poesia e Verdade
Autobiografia de Goethe
1917
"Quando queremos lembrar de algo que nos aconteceu na mais tenra infância, ocorre frequentemente o caso de que aquilo que ouvimos de outros se confunde com o que nós realmente lembramos, visto a partir de nossa própria experiência."
Na infância, Goethe descreveu um único acontecimento. Uma tarde o escritor jogou pratos, louças e outros objetos à rua, sob incentivo dos vizinhos. Após o advento da psicanálise, recorda Freud, lembranças da primeira infância são importantes e as vivências posteriores confirmarão esta afirmativa. A interpretação reconheceria a existência de "lembranças encobridoras", conteúdos infantis substituídos por outros. A elaboração psicanalítica busca esclarecer o significado das lembranças infantis mais antigas.
Em Goethe, Freud não encontrou relação entre o acontecimento da louça na rua e a vida psíquica infantil do autor. No entanto, pacientes relataram lembranças de infância semelhantes à ocorrida com Goethe. Freud se perguntou como rastrear na infância do poeta as condições que poderiam levar à interpretação. Estudou a família do pesquisado. Dos vários irmãos, apenas o escritor e a irmã Cornelia sobreviveram.
Companheiro de Goethe nas brincadeiras, o irmão Hermann Jakob encontrou a morte aos sete anos. Goethe, perto dos 10 anos, não chorou e irritou-se com o sofrimento dos pais e irmãos.
Lançar as louças representaria uma ação simbólica, mágica, uma forma de a criança expressar o desejo de vencer o intruso perturbador, de mostrar o rancor aos pais. Outros relatos de pacientes confirmaram a interpretação realizada por Freud. Goethe foi uma criança feliz. Por erro da parteira, foi dado como natimorto. Ele não precisou dividir o amor da mãe com Jakob.
De acordo com Freud, quando o filho é o preferido da mãe, este desenvolve o sentimento de conquistador: a confiança no êxito. Se a força tem suas raízes nas relações com a mãe, Goethe antecipou a história de sua vida.
Capítulo 9
O Humor
1927
No artigo O chiste e sua relação
com o inconsciente, 1905,
Freud trata o prazer humorístico substituto
ao esforço de poupar
sentimentos desprazerosos.
Gênese do ganho de prazer
A essência do humor, diz Freud, consiste no fato de poupar afetos, os sentimentos se expressam por meio do humor, uma piada. O processo no ouvinte deve ser semelhante ao que se passa no humorista. O ouvinte será o eco. O humor está relacionado ao êxito do narcisismo, à invulnerabilidade do Eu. Característica essencial para o humor, o Eu não permite que conflitos exteriores lhe causem aflição, os transformem em espaços para o ganho de prazer. O humor não é resignado. É consolador. Significa o triunfo do Eu e do princípio do prazer, apesar das relações reais.
A recusa da realidade e a manutenção do princípio do prazer tornam possível o humor se alimentar de processos regressivos e reativos. Oposto, o chiste serve ao ganho de prazer, ou coloca este ganho a serviço da agressão. Humor afasta o sofrimento, mostra o Eu invencível, o princípio do prazer, mantém a saúde psíquica. O indivíduo se protege do sofrimento.
O Eu abriga em sua essência o Supereu, herdeiro genético da instância paterna. Mantém o Eu sob vigilância, em dependência. A atitude humorística significa tornar o Eu diminuto, tornando o Supereu mais poderoso, aumentando as possibilidades de reprimir o Eu.
Dessa forma, o chiste seria uma contribuição ao cômico conduzida no inconsciente. O humor é uma contribuição para o cômico, por meio da mediação do Supereu. Nem todos são capazes de atitude humorística, talento refinado, raro, fundamental para a vida psíquica.
Capítulo 10
Dostoievski e o parricídio
1928
Quatro aspectos são destacados por Freud
na personalidade de Dostoievski:
escritor, neurótico, moralista, pecador.
Como escritor, basta citarmos Os Irmãos Karamazov, romance extraordinário. O capítulo “Grande Inquisidor” é uma obra prima da literatura universal. Analisaremos o aspecto moralista. Para Freud, ético é um indivíduo que reage a uma tentação interna sem ceder. Dostoievski tenta reconciliar as exigências pulsionais do indivíduo com as exigências da comunidade. O escritor não se torna um libertador, submete-se à autoridade universal (o Czar) e à espiritual (Deus cristão). Sua neurose o condenou às trevas.
Dostoievski possuía enorme carência afetiva, enorme capacidade para amar. De acordo com Freud, os traços ocultos de violência e de egoísmo, assim como o vício no jogo, teriam se voltado contra o escritor, tornando-o masoquista e com forte sentimento de culpa. Podemos observar essas características no seu talento artístico. Apresentava graves ataques de epilepsia, perda de consciência, convulsão muscular e desânimo. É provável que sua epilepsia fosse de origem histérica, decorrente de sua neurose: perturbação proveniente da própria vida anímica.
Ainda menino, a doença se abateu na forma de melancolia, um sentimento de que morreria em breve. Os sentimentos de morte, estados letárgicos, significavam a identificação com o morto: alguém a quem ele desejava a morte. O ataque seria uma autopunição ao desejo mortal contra o pai odiado. O parricídio é o crime principal e originário da humanidade, assim como do indivíduo. Fonte principal do sentimento de culpa.
O medo da castração conduz o menino ao abandono do Complexo de Édipo. O Supereu é o herdeiro da instância parental. Se o pai foi cruel na realidade, o Supereu será exigente, sádico e o Eu tornar-se-á masoquista: assumirá uma posição passiva. O ataque de morte representa para o Eu a satisfação da fantasia do desejo masculino, para o Supereu, a satisfação por meio da punição.
Dostoievski esperava encontrar no ideal de Cristo uma forma de se libertar da culpa por meio de seu próprio sofrimento. No romance Os Irmãos Karamazov, o autor coloca sua própria doença, sua epilepsia, no assassino do pai. Confessa que o neurótico epilético nele existente é o parricida. O personagem criminoso é relatado como um salvador ao livrar os outros irmãos da culpa: o assassinato já se realizou.
Na vida do autor, o vício no jogo assumiu papel importante. Jogava até tudo perder, jurava não mais jogar, implorava o perdão da mulher e neste estado de miséria surgia a produção literária: o ciclo se repetia.
Freud associa a compulsão à relação mãe-filho, à compulsão onanista. E cita como exemplo Stefan Zweig, Vinte e quatro horas na vida de uma mulher, seu romance preferido
Capítulo 11
O Prêmio Goethe da cidade de Frankfurt sobre
o Meno foi concedido a Sigmund Freud em 1930
Em 26 de julho de 1930, Dr. Alfons Paquet, secretário da Curadoria do Prêmio, comunica a escolha de Freud como vencedor do prêmio Goethe. Freud envia a filha Anna para receber o prêmio.
Alguns aspectos do trabalho do pai relacionados no discurso
de Anna Freud na casa de Goethe, em Frankfurt.
Freud definiu o objeto do trabalho: descobrir o funcionamento do aparelho psíquico e suas perturbações. Cita Goethe, o artista, pesquisador, a integração de vários aspectos de sua personalidade. Lembra como o autor reconheceu as poderosas forças das primeiras ligações afetivas das crianças e como as pessoas, do âmbito familiar, são transformadas em objetos substitutos de amor.
Goethe sempre considerou Eros uma força poderosa, seguindo suas expressões mais primitivas. A Psicanálise procurou contribuir para o entendimento das realizações dos grandes homens. Apesar de inúmeras contribuições, Goethe também foi um encobridor: não se revelou inteiramente na autobiografia.
Capítulo 12
Posfácio
Faróis e enigmas:
arte e psicanálise à luz de Sigmund Freud
Sigmund Freud buscou elucidar os lugares obscuros que habitam o indivíduo e se transformam em sintomas. O diálogo com a arte sempre foi fundamental para Freud.
O interesse pela psicanálise
1913
"A respeito de alguns problemas que se entrelaçam a propósito da arte e dos artistas, a maneira de ver psicanalítica fornece esclarecimentos satisfatórios, outros lhe escapam totalmente".
Encontramos textos no presente volume que mostram a relação entre a psicanálise e a arte. Podemos citar "O Moisés, de Michelangelo". Freud nos mostra como não é possível a leitura da obra de arte, sem considerarmos a diferença entre intenção e expressão do artista. Podemos ver nesse intervalo, a divisão do sujeito inaugurada por Freud no conceito de inconsciente. Freud percorreu caminhos que mostraram a importância das relações entre arte e psicanálise; os processos da criação artística como fator de transformação do mundo e do indivíduo.
Freud recebeu o Prêmio Goethe, prêmio concedido a personalidades importantes da cultura na história da Alemanha. No texto "Dostoiévski e o parricídio", Freud analisa o romance Os Irmãos Karamazov, onde mostra os conflitos psíquicos do autor. A arte não foi suficiente para salvar Dostoiévski do seu sofrimento psíquico. "O poeta e o fantasiar", de 1908, nos mostra os processos da criação. O poeta recupera com sua obra o brincar infantil.
Para se tornar adulto o indivíduo necessita incorporar a lei e os códigos morais; estabelecer um limite entre a fantasia e a realidade. "Uma lembrança da infância de Leonardo da Vinci", texto em que Freud analisa o psiquismo, as fantasias e o destino que damos a elas. A arte de Leonardo mostra o profundo embate pulsional do artista. "Poesia e Verdade" se refere à lembrança de Goethe e sua similaridade com recordações dos pacientes de Freud.
"Transitoriedade" apresenta a função da finitude como fundamental no valor atribuído aos objetos do nosso mundo. No texto "Personagens psicopáticos no palco", observamos a possibilidade do espectador/ leitor se identificar com os heróis das narrativas, projeção de seus conflitos. Freud percorreu um vasto campo de pesquisa ao mostrar a intersecção entre arte e psicanálise. Estes textos constituem uma verdadeira caixa de ferramentas.