Brasil Editor
Contemporâneo
.
Assim, a nossa República
Sérgio dos Santos Netto
O autor é jornalista, advogado, sociólogo
Madrugada. Escolhido para executar desconfortável e inadiável missão na madrugada daquele domingo chuvoso, o tenente-coronel Mallet chegou ao Paço da Cidade acompanhado da escolta formada por soldados confusos quanto ao objetivo a ser cumprido. Sem perda de tempo, o militar se dirigiu aos quartos e retirou os assustados moradores da cama. Em nome do governo provisório comunicou a decisão da junta governativa: a família que acabara de se recolher ao leito deveria embarcar naquele instante. Diante do inesperado comunicado, deposto e expulso da pátria que sempre amou, Pedro II e a família iniciaram uma improvisada arrumação dos bens que poderiam levar. Ao sair do palácio, Pedro respondeu com sua cartola à saudação disciplinada dos soldados ainda confusos, imerso na casaca que sempre o acompanhou. Ao lado da imperatriz Tereza Cristina, da princesa Isabel e seu marido, o conde D’Eu, de seu neto mais velho, Pedro Augusto, entrou na pequena carruagem. Todos entraram na carruagem.
Deposição. O novo governo temia demonstrações de apoio ao imperador, uma reação violenta contrária ao movimento e a madrugada de domingo parecia a melhor escolha para um embarque dissimulado. A família imperial foi conduzida ao Cais Pharoux ao lado do palácio, e ali, a bordo do cruzador Parnaíba, aguardou a chegada dos três filhos da princesa vindos de Petrópolis. O Parnaíba os levou à ilha Grande e a família embarcou no vapor Alagoas rumo à Europa. Era o fim da Monarquia Constitucional Parlamentarista no Brasil. E o imperador morreria exilado em Paris, saudoso e impedido de retornar ao país onde nasceu e governou por quase 50 anos. Os bens da família imperial foram a leilão.
Republicanos. Estava inaugurada a série de intervenções nos governos costituídos. O fim do império aconteceu sem a participação popular. Militares fortalecidos na Guerra do Paraguai, apoiados por um grupo de políticos positivistas seguidores de Auguste Comte, fabricaram as razões para depor Pedro II e dar início à República na manhã do dia 15 de novembro de 1889, na Praça da Aclamação, atual Praça da República. Nas palavras da princesa Isabel, a razão principal foi a Lei Áurea. Sem escravos e sem indenização aos donos dos escravos, o complô seria inevitável.
Ordem e Progresso. Ao gritar para a tropa reunida “Viva Sua Majestade, o Imperador!”, o marechal Deodoro proclama a República em cima de um cavalo e passa a chefiar o governo provisório. O lema positivista "Amor como princípio e ordem como base; o progresso como meta" serviu de inspiração aos fundadores do novo regime e foi parar na bandeira nacional desenhada por Decio Villares, no Rio de Janeiro, simplificado em “Ordem e Progresso”. O desenho da bandeira foi roubado na sede dos positivistas, na Glória, e jamais encontrado.
Primeira Constituição. Nossa primeira Constituição republicana estabelecia eleições diretas no voto popular. No entanto, excepcionalmente, desta vez, para presidente e vice, a eleição aconteceria no Congresso Nacional. Deodoro, que se declarava amigo inseparável do imperador e inimigo do primeiro-ministro monarquista Gaspar Silveira Martins, seu rival na juventude em busca da mesma mulher, e outro marechal, o Floriano, foram eleitos para os cargos. Porém, com as finanças arruinadas, falência dos bancos, quebra da bolsa, os monarquistas em oposição revoltada e o vice Floriano em busca do poder, Deodoro resolveu adotar uma solução radical: fechou o Congresso no dia 3 de novembro de 1891.
Canhões do Riachuelo. Outro acontecimento foge às anotações de caráter democrático. Em apoio a Floriano Peixoto, vice sempre desejoso de ocupar a presidência, o almirante Custódio de Melo exige a renúncia de Deodoro ao apontar os canhões do encouraçado Riachuelo na direção da cidade do Rio de Janeiro. Ameaçado com a pontaria treinada na Guerra do Paraguai, intimidado e sem desejo de continuar na presidência, Deodoro renuncia no dia 23 de novembro, data da primeira Revolta da Armada, e passa o cargo ao vice. Enfim, Floriano na presidência.
Restabelecidas as eleições ao término do governo de Floriano Peixoto, é a vez do paulista Prudente de Morais. O primeiro presidente civil encontra o país em apuros, com ambiente político instável, queda do preço do café no mercado internacional, desvalorização da moeda, guerra civil no Rio Grande do Sul e Antônio Conselheiro na Bahia, em Canudos. Depois das fracassadas expedições militares e do coronel Moreira Cezar tombar morto em combate no Arraial, Prudente de Morais ordena ao marechal Bittencourt, ministro da Guerra, um ataque generalizado a Canudos. Será um banho de sangue, o Arraial é dizimado. No entanto, uma surpresa grotesca aguardava os vencedores. Ao recepcionar Bittencourt na volta do massacre, o presidente sofre um atentado. Mas, ironia singular além de grotesca, o tiro mata Bittencourt. E lá vem outro acontecimento não esperado. Prudente decreta estado de sítio, afasta políticos de oposição e governa assim até o fim.
Depois de Prudente. O eleito veio por Minas Gerais, depois por São Paulo, por Minas, por São Paulo... na política Café com Leite, e ao fazer as contas, mais café do que leite. Para interromper o ciclo vicioso, o movimento de nome Tenentismo coloca o advogado Getúlio Vargas no poder, um gaúcho de São Borja, líder carregado na onda revolucionária vinda do Rio Grande do Sul. A revolução depõe o carioca de nome Washington Luís Pereira de Souza, décimo terceiro presidente do Brasil, último da República Velha, e impede a posse do eleito Júlio Prestes, um político de São Paulo. Era o dia 24 de outubro de 1930, 21 dias antes do término do governo de Washington, governo no qual Getúlio teria exercido o cargo de ministro da Fazenda até 1927. Um carro aguardava Washington Luís nos fundos do Palácio do Catete.
Estado Novo, charutos e vedetes. Getúlio reformou, criou leis de proteção ao trabalhador, fez ministérios, prendeu, organizou a Petrobrás, bateu, conseguiu financiamento para a indústria do aço, fumou charutos e assistiu a vedete Virgínia Lane cantar nos palcos do Rio. Durante o governo provisório de quatro anos, nomeou interventores nos estados onde a oposição era forte, enviou tropas federais ao estado de São Paulo em 1932, venceu a revolução, mas os paulistas conseguiram a Constituição de 1934.
Inconformado, Getúlio fechou o Congresso Nacional em 1937, editou a nova Constituição e instalou o Estado Novo. É firmado o trato de Washington, documento que deu origem à Política da Boa Vizinhança com os Estado Undidos, e Getúlio envia a Força Expedicionária Brasileira, FEB, os corajosos pracinhas, à Segunda Guerra Mundial. Em 1943 surge um documento apelidado de “Manisfesto dos Mineiros”, assinado por 76 intelectuais e empresários. Atacado por setores oposicionistas, sem apoio no meio militar, Getúlio é deposto no dia 29 de outubro de 1945. Para cumprir o restante do mandato assume José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal.
Bota o retrato do velho, bota no mesmo lugar. As eleições são restabelecidas na Constituição de 1946. Eurico Gaspar Dutra é eleito o 16º presidente, apoiado por Getúlio. O miliitar joga o Partido Comunista Brasileiro na ilegalidade, caça parlamentares opositores, prende sindicalistas, fecha sindicatos e proibe os jogos de azar. Para registros sonoros, quando o marechal falava trocava a letra C pela letra X, mas só quando falava. Ao vencer o candidato da oposição Eduardo Gomes, brigadeiro e udenista, Getúlio retorna à presidência legitimado no voto popular. Os daquele tempo viram o retrato do velho no sucesso da marchinha de carnaval de Francisco Alves e provaram os doces de nome brigadeiro. Os doces continuam em cartaz, fazem sucesso nas festas, já o retrato do velho... O segundo mandato de Getúlio enfatizou o fortalecimento da siderurgia, petroquímica, energia e transportes. A política do populismo é creditada a Getúlio Vargas, política muito utilizada até os dias atuais. “O sucesso do populismo depende do aproveitamento estratégico das classes sociais desorganizadas, um ambiente favorável aos líderes carismáticos, políticos em busca de apoio popular em troca de promessas”. Quem é mesmo o autor desse pensamento?
Um tiro na História. Novamente atacado por grupos políticos contrários, apoiado por militares indecisos, o fim era previsível, ou melhor, imprevisível. O chefe da guarda pessoal de Getúlio, Gregório Fortunato, toma uma atitude. Vários tiros são disparados na madrugada de 5 de agosto de 1954. O alvo é o jornalista e político Carlos Lacerda, opositor severo do governo. Quando o carro com o jornalista chega ao número 180 da Rua Tonelero, em Copacabana, o pistoleiro Alcino atinge o major Ruben Vaz com duas balas no coração, e outro atirador acerta o pé do jornalista. O oficial da Aeronáutica de 32 anos, amigo de Lacerda, exalou o suspiro final no colo do jornalista. Estavam na ambulância a caminho do hospital. Os disparos iriam atingir o presidente dentro do Palácio do Catete, e pelas costas, como afirmaria dias depois.
Nero Moura, herói de guerra, brigadeiro e ministro da Aeronáutica, instaura o famoso IPM que deu início à “República do Galeão”. Sob as ordens do chefe da guarda pessoal, a emboscada planejada para matar Carlos Lacerda acabou por dizimar as últimas esperanças do presidente no governo. Além de Gregório e outros políticos, participaram do complô o irmão Benjamim Vargas e o general Mendes de Morais, segundo depoimento do chefe da guarda pessoal. Teria sido mesmo Gregório o mandante do atentado? Colocaria em risco o futuro do governo sem receber ordens superiores? Condenado, Gregório cumpriu pena e pouco antes de ser libertado comentou sobre um livro de memórias com base em suas fichas arquivadas na cela. Às vésperas da soltura seria assassinado a facadas no pátio do presídio Frei Caneca, e as fichas nunca foram encontradas.
No dia 24 de agosto de 1954, os ministros reunidos no Palácio do Catete negociam uma licença, querem afastar Getúlio do cargo. O presidente assiste sentado na cabeceira da mesa. Encerrada a reunião do ministério, Getúlio sobe as escadas em direção ao quarto de dormir. Antes, porém, surpreende o ministro da Justiça, Tancredo Neves, e o presenteia com a caneta Parker 51 de ouro. “Para o amigo certo das horas incertas”, disse.
O estampido. Vindo do quarto ecoa na sala debaixo, na madrugada, na História. Refém da vaidade, Getúlio se vinga no próprio coração, consciente da tempestade que desabará sobre o país. “Deixo à sanha de meus inimigos, o legado de minha morte”. A folhinha exibia o dia de São Bartolomeu, e a tempestade desabou. Café Filho assume o cargo em meio à tempestade. Político da oposição, protestante, o vice-presidente nascido em Natal completaria o restante do mandato até novembro de 1955. No entanto, um enfarte encurta o seu período. O cargo é transferido ao presidente da Câmara, Carlos Luz, logo a seguir deposto. Em 11 de novembro o marechal Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra, lidera um movimento de caráter preventivo, profilático, decreta o Estado de Sítio para assegurar as posses de Juscelino Kubitschek, JK, e de João Goulart, Jango, eleitos no voto popular para os cargos de presidente e vice. O marechal Lott age para evitar que algo de excepcional ocorra na República, sem reparar que protagonizou o excepcional. Nereu Ramos, vice-presidente da Câmara, é o próximo presidente provisório da lista. Juscelino e Jango tomam posse em 31 de janeiro de 1956. Contas refeitas, cinco presidentes em pouco mais de um ano.
Em Brasília. Ao pretender levar desenvolvimento ao interior do país, “50 anos em 5”, JK provoca intencionalmente um vazio na cidade do Rio de Janeiro e, disfarce medíocre, manda construir um viaduto imprestável que será demolido no governo do prefeito Eduardo Paes. O presidente democrata tenta cassar o mandato de Carlos Lacerda, mas a Câmara nega provimento ao pedido. No entanto faz sucesso na censura, impede a fala de Lacerda na televisão durante o período de seu governo e proíbe as músicas do compositor Juca Chaves nos meios de comunicação, entre elas a provocativa marchinha “Caixinha, obrigado”.
Banido da vida política no movimento militar, Juscelino dirá anos mais tarde ao próprio Lacerda, então outro banido, que seria deposto se permitisse a fala do jornalista na televisão. O governo de Juscelino rompe com o Fundo Monetário Internacional, FMI, e o processo inflacionário dispara. A cidade do Rio de Janeiro transformada no Estado da Guanabara elege Carlos Lacerda seu primeiro governador, governador que tentará salvar o Rio do abandono premeditado.
Vassouradas. Estamos no ano de 1961 e outra eleição se aproxima. Chega Jânio da Silva Quadros, o homem da vassoura, que varreria todas as mazelas. Carlos Lacerda faz um pronunciamento à noite no canal de televisão dos Diários Associados e Jânio renuncia no dia seguinte, sete meses depois da posse. O ex- presidente acusa as “forças ocultas”. Encerradas as negociações políticas depois da renúncia de Jânio, os militares permitem o retorno do vice João Goulart ao Brasil e a posse no sistema parlamentarista, ao lado do primeiro-ministro Tancredo Neves. Adiante, um plebiscito popular devolveria a Jango o sistema presidencialista. Jango quer reformas de base. Mas as reformas são inviáveis, agridem a elite conservadora brasileira. E Jango, execrado na “Marcha da família com Deus pela Liberdade”, é deposto no movimento militar de 1964 com apoio de civis. O movimento e as marchas femininas com “Deus pela Liberdade” foram organizados no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, IPES, instituição criada e dirigida por um militar: Golbery do Couto e Silva. Os recursos financeiros eram obtidos no governo, no exterior e no empresariado. Os militares assumem em caráter provisório, escolhem Castelo Branco para presidir o país, e os eleitores aguardam as urnas prometidas para 1965. Juscelino e Lacerda, opositores entre si e ao governo, são candidatos. No entanto, mais uma vez os militares conseguem governar o país sem eleições. Governam por 20 anos, um pouco mais.
Diretas Já! Nasce o movimento em favor das eleições livres. Eleito presidente em 1985, no Colégio Eleitoral, Tancredo Neves iria falecer antes da posse, e José Sarney, eleito vice no mesmo Colégio para um mandato de quatro anos, assume a presidência e estica o período para cinco anos. Na sequência e no voto popular, será eleito o alagoano Fernando Collor de Melo. A primeira medida é confiscar o dinheiro dos brasileiros. Eleito no voto popular após os militares, Collor é denunciado por seu motorista e o irmão Pedro Collor. É acusado de realizar rituais macabros no Palácio, seções executadas à noite com galinhas mortas, e denunciado por receber dinheiro clandestino proveniente do Uruguai. O presidente renuncia.
Assume o vice Itamar Franco, mineiro do novo plano econômico e do Real, moeda cunhada em homenagem aos nobres. O ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, FHC, afirmaria na televisão que o Real é confiável, é coisa de Rei. O povo confia e o plano é um sucesso. Cardoso retira Itamar Franco do caminho e se elege presidente por quatro anos. Até então inexistente na Constituição, FHC recebe do Congresso o direito à reeleição. Ao suceder Cardoso, um torneiro mecânico interrompe a série republicana oligárquica e se elege presidente: Luis Inácio da Silva, o Lula de Garanhuns, no Recife. Ele agrada e é reeleito, consegue completar os oito anos de governo. Eleita e reeleita sua sucessora, Dilma Rousseff é deposta.
Ao considerarmos a Nova República, período contado a partir de 1985, hoje estamos na Sexta, segundo os historiadores. Lula foi o único presidente eleito que recebeu o poder de um governante eleito e o entregou a outra governante também eleita, todos no voto popular. Impedimento de Dilma concluído, o vice-presidente Michel Temer é empossado e cumpre o restante do período. Nas eleições seguintes, Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, um ex-capitão do exército e um general reformado, ocuparão a presidência e a vice-presidência.
O Retorno. Depois de 580 dias na prisão, Luis Inácio Lula da Silva é eleito presidente da República para o terceiro mandato, após ter exercido a presidência entre 2003 e 2011. O novo governo tem início em 1º de janeiro de 2023.
Epílogo confessado
Eis que surgem dúvidas inesperadas. Como terminar a nossa República, ou melhor, o ensaio sobre a República? No desejo de considerações finais, seria bom lembrar que os brasileiros são o resultado da miscigenação de 40 matrizes, confluência que resultou num povo capaz de cultivar a paz, adotar soluções próprias, assumir atitude negociadora e dispensar a marca do sangue na bandeira, o vermelho presente em bandeiras de outras nações. Apesar das nove interrupções que tivemos no processo republicano, o Brasil continuará Brasil, o brasileiro continuará brasileiro e a República... Assim, a nossa República.
Consultas
Período do Império.
Lilia Moritz Schwarcz e Laurentino Gomes.
O anjo da fidelidade.
José Louzeiro, Francisco Alves, 2000.
2025, caminhos da cultura no Brasil.
Domenico de Masi, Sextante, 2015.
Revoluções do Brasil contemporâneo, 1922.1938.
Edgard Carone, Ática, 1989.
História das revoluções brasileiras.
Glauco Carneiro, Record, 2ª edição, 1989.
Brasília Kubitschek de Oliveira.
Ronaldo Costa Couto, Record, 2006.
Carlos Lacerda, um raio sobre o Brasil.
João Pinheiro Neto, Gryphus, 1998.
Carlos Lacerda, Depoimento.
Nova Fronteira, 1978.
Juscelino, Uma história de amor.
João Pinheiro Neto, Mauad, 1995.
Jango, Um depoimento pessoal.
João Pinheiro Neto, Record, 1993.